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#333: Metade da Besta

| sexta-feira, 28 de dezembro de 2012 | 3 comentários |





- Feliz Ânus Novo!
 Foi a última coisa que ele ouviu, depois de deixar cair o sabonete no duche.




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| terça-feira, 25 de dezembro de 2012 | 7 comentários |

Há Sempre um MacClaúdio em Cada Solstício

| segunda-feira, 24 de dezembro de 2012 | 5 comentários |

Quando chega a noite de natal, existem apenas duas tradições que respeito com fiel ardor e devoção. Uma é ali da região de Borba e a outra é oriunda da Escócia. 
Abstenho-me do peru e quejandos bacalhaus em prol desta maravilhosa fusão de culturas: a alentejana e a celta. Não sou xenófobo nas tradições nataleiras; apetecem-me também tabacos de outras regiões, de texturas moles e aromáticas, mas isso são apetites que não posso satisfazer, com  grande pena e saudade minha.
Se pensarmos bem, não  é assim tão estranho celebrar o natal encalhado entre tão distantes etnografias. Uma já foi berço de imortais e a outra é frequentemente visitada por extraterrestres. Ambas têm um sotaque deliciosamente carregado; ambas permitem o uso de saias ao domingo e ambas aliviam o fardo da existência em pequenas doses intercambiáveis.
É uma noite calma e silenciosa a do nosso salvador, uma noite de recolha e paz. Saio portanto trajado a rigor: tomates à solta por debaixo da saia padronizada, peitos musculados ao léu como que a desafiar o temperamento dos deuses pagãos. Coço o escroto vítima de micose meridional e possuído de uma vetusta ânsia andaluz, mijo em cada um dos 18 buracos do campo de golfe junto ao mar; como se fosse um highlander sem capote.
-  There can be only one ! - Exclamo em voz alta.
 – E que seja de Borba! – Acrescento depois à laia de conciliação cultural.


Como o Sódio Sem Cloro

| sexta-feira, 21 de dezembro de 2012 | 3 comentários |

“Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.”
J.P. Sartre

Sei que estou nu e ainda assim apresento-me a tribunal. Entrego-me à mercê dos meus pares no estado em que vim ao mundo: transparente e impoluto. Sem mágoas, sem apelos, sem agravos. Sou tudo o que está à vista. Assumo a tremenda estupidez, arrogância e inépcia de me comportar como um ser pertencente à humanidade. Não valho nada, estou consciente e em paz. Conhece-te a ti próprio, alvitram as filosofias; é isso que faço: conheço-me a cada dia que passa e a cada dia sinto mais asco daquilo que sou: um verme vermelho e verde, uma viscose daninha, um vírus vaidoso. Mea Culpa por tudo o que fiz e por tudo o que ainda virei a fazer. É muito importante prevenirmo-nos de pessoas como eu, Meritíssimo. Se me deixam a sós e sem supervisão, isto é, se me deixam tomar decisões baseadas no livre arbítrio, então declaro ser um individuo perigoso. Não sou fiável admito, sou cruel e traiçoeiro; sou instável como o sódio sem o cloro; mereço o cadafalso, uma guilhotina que me apazigúe, digníssimos.
Um dia saí à rua e fui mau porque pude, e essa foi a mais forte das drogas que já tomei, também a mais viciante.
Não tenho medo de deus, senhor doutor, tenho medo de mim; é que, sabe senhor doutor, de mim eu já senti as dores, deus nunca vi.
Por esta altura um meirinho fustiga-me os genitais com uma vara de bambu, só para ver se ainda funcionam uma vez que se dependuram ressequidos. Ai! Exclamo deveras incomodado, a madeira quando ofende as partes pudibundas tende a ser dolorosa, e lá está, as dores eu sinto.
É um facto que está vivo, declara o Supra Sumo Supremo Meritíssimo. É um facto que é culpado. Deverá portanto ser exposto como exemplo. Atirem-no pela janela besuntado de mel, depois soltem as vespas.

Eu Não Sou o Elvis

| quarta-feira, 19 de dezembro de 2012 | 3 comentários |

Sei que me tornei um epicurista quando até o som do vinho a bater no fundo do copo me dá prazer. É um acto que alegra todos os sentidos, o beber. E se houve quem se tenha lembrado que não era satisfeita a audição, logo houve quem de imediato inventasse o tchim-tchim. Quem me contou isto foi um amigo meu, numa noite de grande bebedeira. Disse isto e adormeceu com a cabeça encostada ao lancil e o corpo exposto à estrada: a imagem clássica do anjo caído, com a devida ressalva de o meu amigo não ser nenhum anjo.
Pois então, digo-vos eu que me tornei num epicurista invertebrado. Não, não corrijam o português, é mesmo invertebrado que queria dizer. É assim que me sinto quando me dão aqueles ataques de Epicuro, em que tudo me é indiferente e a vida passa lentamente envolta numa estranha modorra. É sempre por alturas do natal que me entrego mais afincadamente a estas práticas de lascívia e entorpecimento. Deve ser por ser esta a quadra que me é mais querida; quando toda a gente é honesta e boazinha e troca prendas desinteressadamente. A imagem do menino, eternamente nas palhas deitado, rodeado de duas vacas e dois burros inspira-me deveras. E por isso deito-me também, e fico ali, todo empalhado, a contemplar o azul do tecto.
Que não devia misturar drunfos com o álcool, insistem os meu amigos, que faz mal, que podes sufocar no vómito. O que eles não sabem é que eu faço isto sempre em jejum, e por isso não corro riscos. Além disso o Elvis fazia a mesma coisa e ainda ia para cima do palco lá em Las Vegas, todo gordo, cantar o love me tender com aquela voz de cú que ele tinha. Se o Elvis pode eu também posso, caraças. O que é que o Elvis tem a mais do que eu? Eu também sou gordo e desleixado. Eu também tenho uma voz irritante às vezes quando estou bêbado e quase sempre quando estou sóbrio. Eu também gosto de aos domingos me vestir de fato de macaco de cetim branco às estrelinhas azuis, e abanar as ancas em frente ao espelho. A única diferença entre mim e o Elvis é que eu não sou parolo.
Olha, por falar nisto, sinto que vem aí outro ataque daqueles; maldito epicurismo que se apega à gente como sarna. Fito o tecto azul e deixo-me embalar num emaranhado de ideias parvas. Ahahah, o Elvis é que havia de gostar disto.

O Enquadramento

| domingo, 16 de dezembro de 2012 | 4 comentários |

Olho as fotografias e imagino que és real e que estás aqui. Sinto que te conheço, como se tivéssemos feito parte um do outro numa qualquer realidade paralela. Às vezes consigo até sentir o cheiro que emanas por debaixo dessa minissaia tímida, tracejada de negro em fundo branco. Gostava de rasgá-la e deixar-te montada nessas pernas longas e torneadas que se apoiam em sapatos de altos saltos negros. Ai! Que visão.
Encostava-te a esse corrimão que atravessa o enquadramento de uma ponta a outra, virada de costas para mim, mala vermelha na mão, e aí sim, entrava em ti, como um animal mítico esfaimado; um Minotauro espumando sexo pela glande. E nisto baralhar-se-ia Teseu perante tamanha cópula, e Dédalo, o perfeito designer, construiria asas inspiradas em orgasmos alados, libertadoras do labiríntico determinismo do homem, do mundo, da história, da guerra e da desigualdade. E no fim, visto de longe, sobraria apenas a fusão dos dois corpos, pairando no ar, nem tão perto do sol nem tão longe, de forma a não se derreter nunca a cera primordial; ali, no meio-termo, como aconselhou Dédalo e o Buda.



O Rei-Lua Postiço*

| sábado, 15 de dezembro de 2012 | 3 comentários |

[…] O corrido, o raimoso, o desleal
O balofo arrotando Império astral
O mago sem condão, o Esfinge Gorda.
 (in Aqueleoutro, M. de Sá-Carneiro, 1916)*


E é assim que passo os momentos de ócio: em ociosidade. Rebolo-me vagaroso na cama de casal que ocupo de forma  singular; gordo, flácido, boçal. Passo os dias nesta forma amorfa de banha espalhada pelas colchas. Não há sentido na vida que não seja engordar, tudo nas estrelas assim o indica, e eu, não gosto de contrariar os astros. Reviro os olhos num bocejar benzodiazepino; a luz do sol filtrada pelas persianas, forma um padrão de luz nas mantas que me tapam. Acordo de tempos a tempos e vejo que o padrão se move da esquerda para a direita, da cama para a parede, da parede para o tecto: é assim que meço o tempo.
Sou um monte disforme de gordura e chocolate. A mão escorrega o suficiente para alcançar a garrafa de vinho; e, é só porque preciso de enxaguar os dentes: há pedaços de carne que se recusam a abandonar os interstícios. Uma boa higiene oral é tudo, dizem na rádio; é verdade, tenho o rádio ligado. As notícias de meia em meia hora confundem-me os sonhos; às vezes sonho que estou na rua a ser entrevistado e que sou belo e magro e ágil, articulo elegante o discurso quando digo que “isto não vai nada bem!”. Acordo de tempos a tempos com o sal da baba solidificado nos cantos da boca e rebolo-me um pouco mais; há que mudar de posição de quando em vez, para evitar a criação de chagas no corpo.
Chove! Que bom que é ouvir a chuva na cama. As gotas a percutirem na janela são como pequenos comprimidos para dormir quando chegam ao cérebro: entorpecem e acalmam-no.
Diz que o mundo está quase a acabar. Gostava de ver isso. Imagino-me deitado; sonolento e muito balofo; arrotando chocolate da América Central, como o um dos Maias. E pensar a quando das primeiras bolas de chamas que irrompessem pela atmosfera:
- Ah! Maria Eduarda, não soubesse eu o que sei hoje e tivéssemos nós mais tempo, ainda era moço para te dar mais uma. 

Honk-Logia I

| sexta-feira, 23 de novembro de 2012 | 6 comentários |

Quando tinha cinco anos, o meu pai levou-me a visitar o seu local de trabalho. Depois de logo à entrada ter sido vítima dos habituais puxões de bochechas e esfreganços de cabelo, acompanhados do clássico “Ah! Campeão”, subi até ao primeiro andar, sempre guiado pela mão forte e enorme (aos meus olhos) do meu pai. Foi apenas um segundo, contou-me ele mais tarde, em que para cumprimentar um colega, o meu pai me deixou da mão. Nesse instante, parece que consegui enfiar-me pelas varetas das escadas e mergulhar de cabeça, qual torpedo, rumo ao rés-do-chão. Do que se seguiu não tenho relatos, mas imagino que tenha sido o pânico. A minha mãe uma vez contou-me  que a minha cabeça parecia uma melancia em tamanho, com a orelha esquerda completamente dobrada, tal era o tamanho do hematoma. É claro que as mães exageram sempre, mas ainda hoje tenho um alto no lado esquerdo da cabeça, para não me esquecer de uma queda que ainda hoje não me lembro.
Trinta e cinco anos depois, quando estava na fase terminal de um cancro na próstata, o meu pai chorava sempre que eu o ia ver ao hospital. As enfermeiras estranhavam muito pois parece que o meu pai, mesmo cheio de dores mantinha o sentido de humor; chegando mesmo a mandar uns piropos de vez em quando. No entanto, sempre que eu atravessava as portas da enfermaria, era um pranto que só visto. Pareces uma Madalena, homem! - censurava-lhe a companheira.
Um dia, em que os pensos de fentanyl  não estavam a fazer efeito e o meu pai já não conseguia chorar, julguei desvendar-lhe nos olhos o segredo íntimo do sofrimento. Não eram as dores atrozes nas artroses, nem a anca delapidada com as metástases, nem o potássio a subir-lhe ao cérebro pela falha renal. Era a queda. O meu pai continuava a ver-me cair com cinco anos de idade. Todos os dias eu caía do primeiro andar. Quando o visitava tinha sempre cinco anos, e, pensando bem, acho que para o meu pai eu tive cinco anos a vida toda. Tive cinco anos quando comecei a fumar, tive cinco anos quando deixei de estudar, tive ano sim, ano não: cinco anos de idade. Uma tarde, durante a visita,  fui buscar café à máquina e quando voltei, já não tinha cinco anos; nunca mais caí desde esse dia, foi então que me estremeceram os joelhos. 

Honk-Logia II

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Não fossem as dores de cabeça fenomenais, não fosse um dia ela ter tentado comer a sopa com o lado errado da colher, e, se calhar ninguém teria descoberto que a minha mãe tinha um cancro no cérebro. Como era uma mulher de guerra, capaz de suportar as maiores sevícias com um espírito estóico digno de envergonhar Zenão de Cítio; aguentou-se quase até ao limite sem um queixume.
Neste caso não houve lembranças nem angústias do passado, também não houve fentanyl, nem nada. O diagnóstico foi quase coincidente com o atestado de óbito.
Uma tarde porém (estas coisas parece que acontecem sempre à tarde) lembro-me de estar à beira da cama dela, na nossa casa, num intervalo entre-dores, e ler-lhe nos olhos um profundo assombramento. É que ela já não me reconhecia. Eu então devia parecer-lhe um estranho qualquer que lhe entrara pelo quarto adentro, no meio da sesta. Já não era o filho que ela via, antes um adolescente qualquer, polvilhado de borbulhas; penugem bastante a despontar-lhe do lábio superior.
Neste caso não havia o sentimento de culpa, nem o remorso, nem aquela angústia materna de continuar a ver o filho a cair do primeiro andar (continuamente) aos cinco anos. Nem sequer havia a lembrança de vê-lo chegar a casa com um buraco abaixo do joelho devido a outra queda do primeiro andar, nem sequer a lembrança das rezas a São Judas, o das causas perdidas. Não havia sequer a clássica repreensão : Porra filho, quando é que vais parar de cair de primeiros andares. E eu não pude responder-lhe que nunca mais cairia de outro primeiro andar enquanto não fizesse os meus vinte anos. Não lhe disse nada porque ela continuava a olhar-me com aqueles olhos assustados de quem diz: quem é esta gente e o que é que eu faço aqui?
Ficámos assim uma tarde inteira, nem ela se importou, nem eu chorei. Foi então que à noite voltaram as dores de cabeça terríveis e tiveram que vir buscá-la pela última vez. O bombeiro, que a conhecia desde miúda, esse sim, chorou que se fartou. Acho que gostava dela.

A Sua Forma Mais Líquida

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"Tudo o que é sólido se dissolve no ar" - Karl Marx

Compra no supermercado uma garrafa de vinho e sai a passos lentos, arrastados. A princípio parece não saber o caminho, mas não está desorientado, é como se estivesse perdido. Vagueia pelas ruas como se evitasse ir para casa. A casa dum homem é a sua paz, é o sorriso de uma mulher na sua direcção, é o silêncio que se anseia. Por isso não tinha casa. Havia uma moradia, um apartamento até, com mobília e loiça e tudo mais, mas não era a sua casa. A sua casa desmoronara-se de um dia para o outro, como um castelo de areia que o mar leva. Que lugar tão comum! Os castelos de areia são feitos de propósito para serem levados pelo mar. É o nosso desejo secreto de destruição. A casa de um homem é o seu espírito, e ele já não o tem. Ergueu-se como Dédalo e estatelou-se como Ícaro.
Agora vejo-o ali parado em frente da passadeira sem a atravessar, o olhar cativo no intermitente das faixas brancas e negras. Os condutores é que não estão para filosofias, e já vociferam caralhadas no conforto dos seus bólides. É uma cidade agitada esta, as pessoas enervam-se muito junto às passadeiras.
Os outros transeuntes julgam-no doente mental. Há muitos doentes mentais nesta cidade. Agarram-no pela mão e tentam levá-lo a atravessar a estrada, eis então que acorda do estupor e pensa que lhe querem roubar o vinho. E nisto larga a fugir apavorado sem direcção que o valha; não tem casa mas tem vinho, e o vinho já se sabe, é o espírito na sua forma mais líquida.  

III- trilogia lapidar

| domingo, 18 de novembro de 2012 | 5 comentários |

Há quem as atire e quem as apanhe: as pedras. Eu cá gosto tanto de atirá-las como de as apanhar, tudo depende da situação; do espaço e do tempo que um indivíduo tem para se dedicar a tais práticas. Agora por exemplo estou disposto e aberto apanhar uma Valente. Tenho o cérebro num túnel aberto onde se cruzam ventos a mais de 300 quilómetros horários. E é uma ventania terrível, não se consegue ouvir nada. Alguém me pergunta algo e eu não percebo um boi, o quê, grito, queres o quê? Não te ouço camândrio! Preciso de uma pedra específica para construir uma barreira ao ruído que se me atravessa diariamente no espírito. Podem ser tijolos também, que isto um indivíduo não vive só de pedras. Hei-de de construir um belo muro, qual Rogério Águas, mesmo no meio do túnel que existe na minha compreensão: e que lindo ficaria! Todo encimado com arame farpado e holofotes a perscrutarem-me os pensamentos mais ruins, aqueles que me acordam de manhãzinha. Sim porque eu cá durmo que nem um justo; mal me batem os costados de encontro ao proverbial colchão ortográfico, adormeço qual querubim loiro, encaracolado, de asinhas sorridente. O meu mal são as manhãs, pá: acordam-me pensamentos nublados; angustiosos mesmo. Existe esta palavra, angustioso? Deve existir, pois se não está sublinhada a vermelho. E depois fico triste como o caraças, pá, e é então que surge a vontade de apanhar pedradas. O próprio Cristo mandou que a primeira pedra fosse atirada por quem nunca houvesse pecado. Por muito respeito que tenha pelo homem enquanto filósofo tenho que discordar dele. A proposição devia ter sido: que peque agora quem nunca atirou a primeira pedra. Então sim, era ver uma arraial de pecado como nunca antes, daquele bom, em que se aproveita a carne, a gordura que escorre, os líquidos da natureza, os néctares mitológicos; era vê-la a rodopiar, tonta, magnífica, bacante até nem mais. Quando há carne disponível, há que mordê-la, arroxeá-la, penetrá-la bem fundo, com os dentes aguçados. O caminho não se faz a pensar no que há ao fundo do túnel, caraças, o caminho é cavar o próprio túnel, desbravá-lo até à sofreguidão, e chegar ao fim e pensar, Ah! Caraças, ganda túnel que eu acabei de esburacar. A palavra ganda ficou sublinhada a vermelho: maldito sejas acordo ortopédico.

elegia lapidar

II - trilogia lapidar

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Dá cá a mão, disse-me ele, esticando o braço para que eu o agarrasse. Estávamos no topo de uma pilha de tijolos com a ideia de saltar para o primeiro andar de um prédio em construção. O movimento que fiz para lhe agarrar a mão provocou o desequilíbrio necessário na pilha para que esta se desmoronasse. Era o último da fila e caí da altura de um primeiro andar, o meu amigo logrou agarrar-se à varanda do prédio. Da queda não me lembro, acho que não senti nada; ao contrário dos filmes americanos nada se passou em câmara lenta, aliás, foi tudo muito rápido. Num momento estava lá cima, noutro estava cá em baixo. A princípio não sabia se havia de chorar ou não, e por isso deixei-me ficar apenas espantado. O resto da pandilha, sã e salva, riu-se a bom rir, daquele riso saudável da primeira infância, um riso automático e inocente: alguém caiu - alguém se riu. Ainda se lembram quando a vida era assim tão simples?
Senti que algo me empastava as calças de ganga; uma mancha escarlate (da cor do fato do homem-aranha, o meu herói da altura) alastrava-se um pouco abaixo do joelho. Apalpei cuidadosamente, e, no sítio manchado encontrei uma depressão que entrava pelas calças adentro: um buraco na perna. Para bom entendedor tinha sido esburacado por um tijolo. Aí sim, permiti-me chorar, para enorme gáudio dos meus companheiros de macaquices urbanas.
O meu pai, sonolento, acabado de sair do turno da noite, levou-me contrariado ao hospital. As minhas irmãs choraram por simpatia e a minha mãe rezou a São Judas, o santo das causas perdidas. Coseram-me e ainda hoje tenho uma cicatriz vistosa que impressiona as miúdas.
Vinte e muitos anos depois encontrei o meu amigo num parque de estacionamento. Não me causou impressão o facto de ele estar completamente pedrado. Mas, ainda que tenha tentado disfarçar, houve um pequeno pormenor que me saltou à vista: faltava-lhe a perna esquerda. Foi de picar nas virilhas, explicou-me. Estiquei-lhe a mão, como que a retribuir o gesto infantil do antigamente. Ele abriu a dele, pensando que lhe ia dar uma moeda. A princípio fiquei espantado, depois, quando me certifiquei que ninguém estava a ver: chorei.

I - trilogia lapidar

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E no dia em que o (na altura) pastor David finalmente atirou uma valente pedrada aos cornos do mastodonte Golias; o escândalo rebentou entre a população judaica, que entretanto estava farta de ser comida a torto e a direito, pelos filisteus: Ai meu deus, disseram eles, mas que jeites David, perquê essa violência toda, atã nã vês que a gente sômes os escolhides de deus, a gente nã é pela violência, a gente é branda, tipo, mansa dos costumes, tás a ver? E David (futuro rei dos judeus) ao guardar a funda, envolto nas peles de carneiro que lhe eram características; incrédulo e estupefacto com tamanho espectáculo de ingratidão, pensou: Que povinho de merda! Nunca estão satisfeitos com nada. Por vontade deles nem sequer tinha havido o 25 de Abril, quanto mais o Natal.

O Homem Que Gostava de Ir às Putas

| sexta-feira, 26 de outubro de 2012 | 10 comentários |

Com as putas não havia necessidade de mentir. De parte a parte. Nem ele mentia às putas nem as putas lhe mentiam a ele. Estavam reunidas portanto, todas as condições necessárias para o início de uma relação sincera e duradoura.
A princípio foi a estranheza. A timidez perante a carne nua e despudorada, a mobília mapeada a tons de vermelho; as luzes em néon, a música quase tribal que lhe acompanha as batidas do coração, os espelhos sujos...
Depois foi o verbo: quero aquela! - Como quem está no talho e aponta para a vitrina:  Aquele belo naco por favor. E o pedaço de carne de pronto lhe é entregue: embrulhado em rendas finas de negro e vermelho, perfume barato salteado de  palavras gentis.
Ainda que o verbo inicial seja o motor de toda a acção, posteriormente, são as exclamações que tomam as rédeas do carburador: Oh!, Ah!, ou apenas (!!!) momentos singelos em que nada se diz e tudo se sente, à flor da pele (lá está o Chico outra vez); tempos interjectivos e puros, roubados aos deuses e tornados sublimes pelo homem. Uma dialéctica muscular que se resume em ir-vir e chegar.
Estão aqui envolvidas todas as ciências do mundo moderno. Primeiro a química, depois a física; a biologia aliada à psicologia, e por fim, como que a rematar o cortejo, ou às vezes encabeçá-lo, a economia: mãe/produto de todas as transacções -  Check please!

Apologia de Apolo

| sexta-feira, 19 de outubro de 2012 | 9 comentários |

Levanto-me da cama e digo adeus à sobriedade. Nunca mais voltarei a escrever sob este manto frio de lucidez que me estremece o espírito e acorda a meio da noite. Não quero! Recordar é não viver.
Apetece-me gritar como Pã no meio da floresta. Quero o caos. Quero correr ao lado dos cães e uivar como os porcos em noites de lua cheia. Não às histórias de encantar: quero-as gregas! Quero-as gregas com grandes titãs.
O lobo mau comeu o capuchinho vermelho e pediu para ser julgado em Portugal. Pronto, é mesmo assim: já não histórias felizes ainda que de vez em quando se encontre uma boa fada.
Os anões voltam aborrecidos da mina onde são explorados há décadas e, num acto de desespero, sodomizam a Branca de Neve à vez. 
Entretanto, noutra parte da floresta, aproveito que a Bela está adormecida e ponho-lhe o falo na boca. Ela acorda feliz mas o príncipe fica com um sabor estranho na boca.
A Cinderela de tanto trabalhar já tens os pés inchados, não há sapato que lhe sirva. Tem um ar velho e gasto.  Culpa dela, digo eu, queria sapatos tivesse casado com um sapateiro. É mesmo assim.
Quero o caos criador da natureza e de todos os deuses. Já chega de princesas de encantar, senhoras de grandes chiliques e pequenas idiossincrasias. Venham de lá essas afrodites poderosas, ciumentas mães de príapos gigantescos, gente real em vez de realeza e titãs, não esquecer, grandes titãs.   

A Minha Alegre Casinha

| sábado, 6 de outubro de 2012 | 16 comentários |

Uma língua desce serpenteante dos picos dos montes mamários até ao declive circular do umbigo, ou embigo, segundo o dicionário existem as duas entradas. Aqui também existem duas entradas, mas por ora debruçamos-nos apenas numa: aquela que primeiramente se situa a sul do equador. É certo que há que ultrapassar montes e vales nesta nossa aventura, mas é uma aventura prazerosa, e como dizia o camarada Cela, o caminho faz-se caminhando, ou neste caso, lambendo.
Descemos do tal umbigo, em ziguezague, como quem não sabe por onde ir, e abordamos a coxa da direita, naquele lugar côncavo mesmo antes de chegar à floresta, outrora apelidada de virgem. É todo um matagal que se tem que explorar: ou não, hoje em dia a pós-modernidade trouxe-nos o landscaping, algo que nos permite ver em pouco tempo toda a anatomia de uma paisagem palpitante. Então, fazem-nos lembrar que do lado esquerdo existe também toda uma estrutura óssea, carregada de carne e músculos e nervos, que exigem uma mesma atenção; é para lá que nos dirigimos, e pelo caminho sentimos o bafo a maresia que nos vem da fossa das marianas: um lugar profundo e misterioso, o mais profundo dos oceanos, segundo a wikipeida.
Não há tempo a perder entre a carne que estremece; lançamos-nos, qual ataque desesperado à cidade sitiada; de boca aberta, língua em riste. Os grandes lábios não oferecem resistência - a investida é digital. Há que estimular os aliados. Depois sim, subimos destemidos pelos montes cavados e sinuosos que circundam a glande daquele que é, escancarado, o Farol de Alexandria, o Monte Evereste, o Kilimanjaro dos manjares: Clítoris de seu nome, o que não pode ser pronunciado, quando se está de boca cheia pelo menos.
Depois é o que se sabe, beija-se, chupa-se, lambe-se, como não houvesse amanhã; como se não houvesse crise, nem troika, nem governo. Convulsões agigantam-se até sentirmos os rios da Babilónia a escorrerem-nos pelos cantos da boca ao mesmo tempo que calcanhares nos batem nos intervalos das costelas. É então que nos lembramos quase sempre de uma música libertadora no seu sotaque:
Não existe pecado do lado de baixo do equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo o vapor... (Chico Buarque)

Olhos de Mula Cósmica

| sexta-feira, 5 de outubro de 2012 | 5 comentários |
- ...Foram aqueles olhos que deram cabo de mim.
- Como assim?
- Os olhos dela, pá, eram terríveis, não havia maneira de os contornar.
- Eram muito bonitos?
- Nem por isso, mas quando saíam à rua, metiam-se no meio da estrada e não deixavam passar ninguém.
- A sério, mas porquê, eram grandes?
- Eram grandes e escuros, como dois buracos negros, o tempo passava mais devagar quando estávamos ao pé deles.

- Tinham uma força gravitacional enorme, portanto.
- Pfff, nem queiras saber, pá, nem a luz conseguia escapar.
- Impressionante.
- Uma vez vi-a pôr-se no meio da pista do aeroporto a olhar para o céu …
- E...
- Os aviões desapareceram todos.
- Como assim???
- Há quem diga que viajaram no tempo e foram parar a uma outra época.
- Ou até a outra dimensão;
- Sim, também há essa possibilidade, o que eu sei é que as leis da física se desmancham todas quando ela se põe a olhar com aqueles olhos de mula.
- São uns olhos portadores de um certa estranheza quântica.
- Nem me digas pá. Uma vez ouvi um cientista explicar que os olhos dela quando explodissem iriam provocar uma onda de choque tão grande que poderia até ser a causa da criação de universos paralelos.
- Ah!
- A sério, universos onde tudo poderia ser igual ou diferente, as leis da física subverter-se-iam completamente e até a percepção do tempo poderia alterar-se.
- Deixar de experienciar o tempo como linear, era capaz de ser interessante, como se andássemos em círculos e o passado estivesse permanentemente ligado ao futuro sem que tivéssemos noção disso.
- Um pesadelo!
- Mais uma condenação. Estarmos sempre a repetir os mesmos erros, a voltar ao mesmo lugar, fazer tudo de novo, sem ser outra vez, porque seria sempre a mesma vez repetida.
- Nem me fales nisso.
- Humm,  gostava de os ter conhecido, esses olhos de que falas.
- Não digas isso nem a brincar pá, foram aqueles olhos que deram cabo de mim.
- Como assim?
- Os olhos dela, pá, eram terríveis, não havia maneira de os contornar.
- Eram muito bonitos?

- Nem por isso, mas quando saíam à rua, metiam-se no meio da estrada e não deixavam passar ninguém.

[...]

Eu, a Porta e o Resto

| quarta-feira, 3 de outubro de 2012 | 7 comentários |

Aconteceu tudo de uma forma muito rápida, como já é costume nas revoluções dos homens e nos terramotos. A água baixou de nível tão depressa que alguns peixes morreram sufocados no ar. O chão tremeu, as paredes tremeram e a chávena de café tremeu-me nas mãos. As pessoas correram desesperadas pelas ruas, não observando o velho adágio que diz que o melhor sítio para se estar numa ocasião destas é junto aos batentes das portas, mesmo que o prédio se desmorone por completo. Desmorone é um belo verbo para insultar turistas anglo-sáxónicos. Foi o que fiz: ao passar por mim um que ia a correr desarvorado, gritei-lhe:
- Corre sim bife antes que o prédio se desMóron.
O homem em pânico, desorientado da vida, respondeu-me com o indicador e o dedo médio esticados:
- fuck you!   
- Vai tu ó parvalhão – gritei-lhe em português – Havia de te cair um tsunami em cima desses cornos.
E digo isto e sinto-me mais aliviado. Não há nada melhor no meio duma catástrofe do que saber que há pessoas a sofrer mais do que nós; é uma doce sensação de conforto que nos aconchega no meio do caos. E no entanto sinto que tremo cada vez mais.
- Eh lá – penso eu - olha que isto já não é só do tremor de terra: há aqui também resquícios de ontem à noite. Uma noite longa e nebulosa, povoada de equívocos. Devia ter pedido um cheirinho no café; é um hábito ancestral  que uma pessoa tende a esquecer-se sempre que uma catástrofe natural nos entra assim pela vida, sem mais nem menos.
A páginas tantas, dou-me conta de uma inusitada mudança de paisagem. O cabrão do prédio acabou mesmo por ruir e só sobrei eu e a moldura da porta. Como numa máquina fotográfica olho através da porta e enquadro a desgraça: tudo são ruínas, destroços, tudo é disforme, não há ponta por onde se pegue e se diga: isto começou aqui e acabou ali. Nada! Não sobrou nada. Tudo tão de repente. E eu só consigo pensar:
- Ah foda-se, agora é que eu bebia um belo de um whisky. 

#323

| domingo, 30 de setembro de 2012 | 6 comentários |

Primeiro retiraram-nos os cordões dos sapatos e só depois é que nos despejaram num cela claustrofóbica, escura e infecta. Três bancos corridos de madeira e para decoração, além da tinta estalada das grades e das marcas de bolor na parede, era só. A princípio gerou-se um pouco de confusão, como numa clássica dança de cadeiras quando a música pára; dois ou três socos que voltearam o ar sem plano de voo, uns quantos pontapés sem bola, dentes partidos, um nariz torto, e vá, muitos egos magoados, mas nada de grave: uma pequena sessão apenas, um tanto ou quanto agitada, de ice-breaking. Depois o marasmo, a inevitável constatação de irmos passar ali uma noite inteira. Já estávamos aborrecidos ainda que só tivessem decorridos alguns minutos.
- Já não se pode manifestar neste país – Queixou-se um dos presentes rompendo o silêncio
- Já não se pode estar bêbado, digo eu – Retorquiu um.
- Já não se pode manifestar bêbado – Concluiu um terceiro para grande gargalhada de todos.
Depois foi o silêncio outra vez. A inconfortável sensação de estarmos sós no meio da multidão; aquele sentimento de alguém nos estar a ouvir os pensamentos: suspiros.
Um melodia em surdina surgiu do nada e pairou sobre as nossas cabeças como uma brisa refrescante no calor da noite. Alguém com dotes artísticos, mimava um virtuoso trompete pressionando apenas os lábios, ao bom estilo do compadre Armstrong. Animado pelo improviso do outro, houve quem desatasse a dançar com pequeninos saltos descoordenados, como se estivesse num velho speakeasy do antigamente. Tinha os cabelos grisalhos, a camisa coçada e as calças caiam-lhe largas, presas apenas por uma corda. A restante turba acompanhou o espectáculo batendo palmas incentivando o homem que dançava frenético.
- Este já é cliente habitual cá da casa – esclareceu alguém perto de mim – Antes via-o sempre bêbado pelas ruas a passear o cão; agora, há muito tempo que o vejo sozinho: o cão deve ter morrido.
E o homem saltava cada vez mais alto, como se quisesse tocar o céu, depois aterrava suave, qual bailarina do Bolshoi. Não dizia nada, mas abanava a cabeça e sorria com os olhos tristes, como se estivesse feliz.
- Quem é este velho – perguntou alguém – parece o Charlot.
- É o Mr. Bojangles – Corrigi.

...e este é para ti n

A Cruel

| segunda-feira, 10 de setembro de 2012 | 10 comentários |

    A mulher gigante que vivia na floresta negra, era considerada uma mulher cruel por muitos e uma heroína pelos seus conterrâneos. A disparidade de critérios para o viajante ocasional só poderia ser considerada à luz da relatividade e da conhecida competição entre os burgos da região.
    Os boatos da crueldade da mulher gigante vinham de histórias do antigamente, onde segundo parece, a mulher gigante chegando a uma aldeia de anões, espetou uma argola na cabeça de uns: transformando-os em porta-chaves e a outros, prendeu-lhes os tornozelos com uma corda, fazendo deles, tampões.

O Shot, o Limão e o Sal da Terra

| sábado, 8 de setembro de 2012 | 8 comentários |

Numa destas noites, tentava eu esquecer as vicissitudes da existência, quando conheci uma personagem que mudou significativamente a forma como encaro a vida. Estava encostado ao bar e senti de supetão um toque no ombro, como quem empurra:
- Tens lume, ó pá?
Virei-me e dou de caras com uma freira portentosa, com quase dois metros de tamanho e pelo menos oitenta quilos de peso.
- Deus te abençoe chavalo – agradeceu-me quando lhe acendi um enorme charuto. Depois pediu uma caneca de cerveja e um shot de whisky irlandês. Eu estava como que incrédulo, sem saber se se tratava de uma partida de carnaval antecipada ou se a estranha criatura tinha vindo de alguma festa de fantasias.
- Ah! Caraças - Abanou a parte debaixo do hábito, como se tivesse a arejar – Esta vida de devota está a dar cabo de mim, miúdo.
- Mas a senhora é mesmo freira? – inquiri desconfiado.
- O que é que julgavas pá, que era um pinguim gigante? - Pediu outro shot que emborcou de penalty e bebeu longamente da caneca. Um pequeno bigode de espuma formou-se-lhe no lábio superior sem que ela o limpasse ou parecesse sequer importar-se. Puxou de uma longa fumaça do cubano e virou-se novamente para mim.
- E tu pá, que é que fazes por aqui? Ganda seca este bar, hã? Pareces aborrecido, 'tás sozinho? Vem comigo, vamos a um bar de strip
Embarquei naquela viagem com a curiosidade de alguém que quer ver como tudo vai acabar.
No intervalo de tempo em que paguei ao taxista, a freira entrou disparada pelo estabelecimento adentro e ainda a ouvi a gritar para o porteiro «sai da frente parvalhão!». Quando me sentei ao seu lado já ela estava a meter notas nas cuequinhas de uma das dançarinas. Pedi um whisky. Ela continuou nas canecas com shots da Irlanda. Espetou mais uma nota de dez na nádega de uma stripper que se agachava, arrotou, e, sem que eu lhe perguntasse nada encetou um desabafo:
- Pois é, pá, se eu não fosse freira, era lésbica. Estou farto desta história de ser noiva de deus – arejou novamente o hábito – Estamos para ali fechadas a maior parte do tempo: irmãs para a esquerda, irmãs para a direita, sempre a louvar o senhor, sempre a louvar o senhor...Estou farta de louvá-lo, pá! - bebeu o shot e pediu outro – Uma mulher tem necessidades, percebes?
- Compreendo perfeitamente - Anuí.
Fez sinal com um maço de notas a uma das raparigas que por ali cirandava, e pouco depois esta obsequiava-me com uma sensual e não menos complicada lap dance. E entre um mamilo que me fustigava o globo ocular e uma nádega que desafiava as leis do fecho éclair, prossegui a ouvir-lhe o desafogo:
- Antigamente é que era pá, com os deuses gregos e mais não sei o quê; volta e meia vinham cá a baixo e tungas: siga fazer filhos às mortais. E assim é que tinha que ser, pá. De onde é que pensas que saíram os grandes heróis, hã?  Do fornicanço divino, camandrio! Hoje em dia, onde é que tu encontras um Hércules, um Aquiles, um Heitor? Em parte nenhuma, pá, é por isso que esta merda está como está. É só louvar, só louvar...É um desperdício de vagina, é o que te digo.
Bebemos cerveja avonde juntamente com shots de whisky, de vodka e de tequilla, e foi só quando já havia sal nas mamas de uma stripper e rodelas de limão na tanga de outra que os bouncers nos convidaram a sair.
A freira, levada ao velho estilo de saco de batatas não se conformava:
- Malditos sejam, fazerem isto a uma mulher de deus! A todos vos esconjuro meus grandes filhos de puta, abrenuntio maledictis cabrões da merda.
Lá fora partilhámos um cigarro. Quando chegou o táxi, a irmã, muito comovida, em grande parte devido à bebedeira, abraçou-me com tal força que desconfio ter-me partido uma costela:
- És um gajo porreiro, pázinho - a emoção a brotar-lhe dos olhos - Se eu não fosse freira era lésbica e se não fosse lésbica era contigo que eu me casava, não fosses tu tão feio.

Como Quem Atravessa o Equador (4)

| quinta-feira, 6 de setembro de 2012 | 2 comentários |

Era aquela terra que o enfeitiçava. Uma terra magnífica e generosa. A felicidade não podia ser mais que aquilo, estar junto da terra, em perfeita contemplação, em harmoniosa comunhão. Os maoris retiravam tudo da terra e à terra tudo retribuíam. Daí o seu ar jovial e saudável, despreocupado e contente, aventureiro e brincalhão...feliz.
Já não saio daqui – Declarou Abrenuncio para uma plateia invisível. Estendeu o corpo tatuado na areia fina da praia e embalado pelo rebentar das ondas, aconchegado na brisa fresca que soprava do mar, adormeceu. Sonhou-se no norte, no longínquo Algarve, nas atormentadas areias duma praia sobrelotada. Uma multidão rodeava-o apreensiva. Houve quem tentasse hidratá-lo, houve quem tentasse reanimação cardiopulmonar, mas nada o trazia ao de cima. Quando os moços do INEM chegaram a única coisa que fizeram foi declarar o óbito.
Acordou com Zubaida a acariciar-lhe o cabelo. 
- Só Al'Arve! Exclamou ela contente por o ver acordar. 
- Sim Zubaida, a partir de agora sou Só Al'Arve.
Só Al'Arve levou Zubaida pela mão até ao mar: o elemento favorito nas suas brincadeiras conjugais; o céu apresentava uma cor diferente, de tons arroxeados; uma massa de calor desprendia-se da terra como se esta suspirasse. Zubaida viu algo que a assustou e apontou para o céu. 
- Oh! Não te preocupes - sossegou-a Só Al'Arve - é só um anão voador.


FIM

Como Quem Atravessa o Equador (3)

| quarta-feira, 5 de setembro de 2012 | 9 comentários |

Um dia foram apanhar pérolas. As pérolas dos mares do sul eram bastante conhecidas do mundo ocidental e o seu valor como joia altamente apreciado. Mas os maoris não as apanhavam com intenção de se tornarem mais ricos ou sequer de se adornarem com elas.
Para os maoris, riqueza era o azul do mar tocar-se com o azul do céu na linha do horizonte; era o calor da terra, a água que caía das nuvens e a amizade dos tubarões. Adornos, gostavam de usar a ocasional orelha de missionário pendurada ao pescoço, e, mesmo esses haviam caído em desuso com a perda progressiva dos hábitos antropófagos. Hoje já não comiam ninguém; verbalizavam apenas essa vontade, num ritual sereno, como forma de respeito pela pessoa que admiravam, um pouco à semelhança do mundo civilizado onde aos domingos se simula comer um deus e beber-lhe o sangue.
Para eles as pérolas eram mais uma forma de divertimento. Usavam-nas numa espécie de jogo muito parecido ao do berlinde, o que encantou Abrenuncio. Cedo se tornou num respeitado jogador de pérolas. E ainda que não soubesse as regras porque parecia não as haver, imitava os outros jogadores que iam atirando as pérolas umas contras as outras e corriam atrás delas e tentavam fazer com que as do adversário ficassem longe da atenção de todos. Era mais um acto de espectáculo do que uma competição em si. Abrenúncio destacou-se quando introduziu no mundo maori o bute de sacada, algo nunca visto naquelas latitudes. Os maoris primeiro quedaram-se mudos de estupefacção, depois em crescendo desataram a soltar vivas à maneira deles: SÓ AL'ARVE!, SÓ AL'ARVE!, SÓ AL'ARVE!,  SÓ AL'ARVE!, 
A população feminina também assistia aos jogos. Toda aquela algazarra servia  como forma dos homens se exibirem e darem nas vistas. E Abrenúncio dera muito nas vistas com aquela jogada. Entre as maoris havia uma que Abrenúncio já trazia debaixo de olho havia algum tempo: era a irmã do escanzelado. Uma moça bonita, de olhar límpido e sorriso desarmante. Abrenuncio, como não conseguia pronunciar-lhe o nome correctamente chamava-lhe Zubaida.
E foi Zubaida que, de entre a multidão, se aproximou de Abrenuncio e declarou com alguma seriedade:
- Quero-te comer!
- Eu também te quero comer – retorquiu Abrenúncio todo contente.

Como Quem Atravessa o Equador(2)

| terça-feira, 4 de setembro de 2012 | 2 comentários |

Passaram-se os tempos e Abrenuncio sentia-se como em casa. Integrara-se aos poucos naquela estranha comunidade e agora era o mundo ocidental que lhe parecia estranho, como um sonho distante.
No corpo ostentava já as marcas dessa integração, na forma das mais variadas e criativas tatuagens. A mais significativa era a do homem a nadar com o tubarão, em desenhos estilizados com traço curvo artístico. Para aqueles maoris o tubarão era uma espécie de animal sagrado. Contavam as lendas do seu folclore popular que os primeiros maoris, os da grande migração, tinham seguido um tubarão na sua viagem para sul. Os de agora também seguiam os tubarões, mas era quando saíam para pescar, em busca dos grandes cardumes. Estavam de tal forma habituados a conviver com os tubarões, que nadavam e pescavam no meio deles, numa espécie de baile sincronizado, sem que houvesse estranheza de parte a parte. Assim, quando convidaram Abrenúncio para uma pescaria este aceitou de imediato. Imaginou-se num pequeno barco, nas águas calmas ao largo da ilha de Faro, com a cana presa entre os joelhos a beber minis. Foi só quando lhe puseram um arpão artesanal nas mãos e se viu rodeado de tubarões é que percebeu que a pesca dos maoris não envolvia momentos relaxantes, e pior que tudo, não envolvia minis. 
A relação dos maoris com os tubarões era parecida à que os turistas têm com os golfinhos do Zoomarine. Abrenúncio é que não ia na conversa deles; a sua cultura ocidental há muito que havia sido conspurcada pelo parvalhão do Spielberg. Os maoris apontavam-lhe os tubarões como que indicando que os devia seguir, fish, fish, gritavam excitados. No fixe, no fixe, exclamava Abrenúncio mostrando-lhes o sinal internacional de receio, que era  o ficar amarelo. Até que, tiveram que o empurrar. A princípio foi o pânico. Depois foi o pânico também e a seguir continuou a ser o pânico. No entanto, aos poucos, foi-se habituando. Os maoris ensinaram-lhe a mergulhar em apneia, o que para ele foi uma revelação, uma vez que a única coisa que estava habituado a fazer em apneia era dormir.
Agora Abrenúncio já não sentia qualquer espécie de medo, e o filtro ocidental havia caído completamente por terra. Finalmente tinha descoberto o verdadeiro prazer de pescar, que era o envolvimento com a natureza, o estar por dentro, por fora e intrinsecamente ligado a ela.  E era tal a sua alegria quando se faziam ao mar que Abrenúncio não resistia a cantar: quem me ensinou a nadar, quem me ensinou a nadar, foi, foi marinheiro, foi os peixinhos do mar…Os maoris como não percebiam um boi da letra acompanhavam só a melodia nanananá, nananá, nananá, e faziam-no com prazer porque no fundo compreendiam o seu significado.

http://www.youtube.com/watch?v=UkPpBOOzRPM

Como Quem Atravessa o Equador (1)

| segunda-feira, 3 de setembro de 2012 | 5 comentários |

Abrenuncio deitou-se na areia e, como há erros que são para repetir, deixou-se dormir ao sol.
Sonhou-se numa ilha do Pacífico, a sul do Taiti, a norte da Nova Zelândia. Um bom sítio para ser desterrado, pensou, já que temos que sair do país que seja em estilo. Como teria ali chegado? Talvez tivesse naufragado – é sempre romântico naufragar -  ou talvez o seu avião se tivesse descontrolado, perdido o controlo de um dos motores, os flaps tivessem emperrado, e ali se despenhasse.
Os indígenas rodearam-no com curiosidade. Inspecionaram-no como se de um cavalo se tratasse; abriram-lhe a boca para ver os dentes, deram-lhe pancadas no lombo, puxaram-lhe o cabelo…
Pelas tatuagens faciais  faziam lembrar os Maoris. Talvez fossem ascendentes destes; alguma tribo perdida que, interrompendo a longa travessia para sul, cansada se ficara por ali. Apresentavam todo o aspecto de serem uma daquelas tribos do Pacífico, que ouvimos falar no National Geographic e nos romances de viagem; daquelas que possuem o estranho hábito de se alimentarem, não exclusivamente, mas também de carne humana. Abrenúncio retraiu-se com a ideia.
Entre eles, havia um escanzelado, que arranhava um inglês macarrónico, não sou portanto o primeiro ocidental a chegar aqui, cogitou Abrenuncio.Trazia um crucifixo ao pescoço que partilhava a atenção com uma orelha humana que se dependurava do mesmo colar.
Quem lhes ensinou o inglês devia ser missionário e não lhes matou só a fome espiritual – concluiu.
- Dond és tu vens? – Inquiriu o Maori.
- Sou Abrenúncio, venho do Algarve.
- Nunci Al’arve – retorquiu o outro.
- Não, não – corrigiu – A-b-r-e núncio do Al-Garve. Soletrou devagar.
- N-un-ci, Al’Arve – Respondeu o outro vagarosamente.
- Al-Garve: é árabe!
- Al’Arve é Rábe.
- SÓ ALGARVE!!! – Exaltou-se  Abrenuncio.
- SÓ AL’ARVE – Gritou o escanzelado e virando-se para os outros designou Abrenúncio.
- SÓ AL’ARVE - SÓ AL’ARVE - SÓ AL’ARVE - SÓ AL’ARVE – gritaram todos em alegre euforia carregando-o sobre ombros em direcção à aldeia, não sabendo Abrenuncio se o estariam a convidar para jantar ou se estariam contentes por terem encontrado o jantar

Um Dia Bem Passado

| sexta-feira, 31 de agosto de 2012 | 4 comentários |

Primeiro arrumou o quarto todo. Limpou o pó, aspirou, mudou os lençóis da cama e compôs o pequeno Buda que se sentava debaixo de uma invisível árvore bodhi na sua secretária. Arrumou os compactos numa caixa e colou-lhes uma etiqueta com um nome que não era o seu. Fez o mesmo com os vinis. Escreveu qualquer coisa no computador enquanto bebia doses generosas de vodka. Esta é a mim, brindava, esta é aos que me vierem buscar, esta é ao pai, outra para o filho e claro não podemos esquecer o espírito santo, o tal que trocou as voltas ao S.José e lhe emprenhou a mulher.
Passou a tarde a ouvir a sua música preferida e a cantar em voz alta. Uma que repetia ocasionalmente era dos Beatles, não aquela que agora toda a gente assassina nos anúncios ranhosos de uma telecomunicadora, antes outra, do álbum Rubber Soul: He’s a real nowhere man, sitting in his nowhere land, making all his nowhere plans, for nobody.
Entretanto mudou de veneno e começou a emborcar whisky de malte; era mais estiloso e impressionava sempre as visitas. Atingiu a fase melancólica da bebedeira e pôs-se a ver velhos álbuns de fotografias. Volta e meia encetava monólogos com as imagens impressas, algumas já desbotadas; fazia-lhes perguntas, dava-lhes respostas, zangava-se com elas e atirava com os álbuns contra a parede. Pronto, agora vou ter que arrumar tudo outra vez – grunhiu.
Lá pela tardinha, como quem diz crepúsculo, àquela hora que os fotógrafos gostam, a hora dourada – deu-lhe aquilo a que uns chamam de coragem e outros covardia, e, dependurou-se pelo pescoço num cinto previamente montado numa barra que tinha na porta. A princípio ainda estremeceu um bocado mas depois acalmou-se. De vez.
Era Romualdo, o homem de nenhures.

Como Quem Vai Para a Índia

| terça-feira, 28 de agosto de 2012 | 6 comentários |

Ao fim de sete anos à procura do Tibete, Abrenúncio cansou-se. As fronteiras estavam fechadas e o ar era rarefeito. Sentou-se numa pedra e poderia ter chorado, como o outro do livro do Paulo Coelho nas margens dum rio qualquer, mas, como não gostava de emular literatura rasca, em vez disso acendeu um cigarro. O fumo volteou pelo ar e com um olho fechado, forçando a perspectiva, Abrenúncio viu a montanha fumegar.
Que desilusão, pensou, agora ter que fazer o caminho todo de volta. Do Tibete ao Algarve ainda é um esticão.
A primeira coisa que fez foi tirar a roupa toda. Pensava melhor quando estava nú.  Descascado no Tibete – aqui está um título bom para um filme.
Poderia ficar ali, para sempre, a admirar de longe o Tibete, como o Dalai-Lama. Mas a santidade nunca foi o seu forte. O que ele queria mesmo era entrar por Lhasa adentro, pregar um estalo ou dois nos chineses e rezar à força toda no Palácio de Potala. Mas agora sentia-se cansado. Ao longe, no sentido Evereste–K2,  um anão voador cruzava os céus a uma velocidade estonteante. É um sinal! – Exclamou Abrenúncio – Volto para trás.

Tragédia Com Sabor a Maresia e Bolas de Berlim

| segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 6 comentários |

Vejo-me com a água pelos joelhos rodeado de senadores. There's a natural mystic blowin' through the air... Mergulho, e nisto César é apunhalado por Casca e Cássio. O sol queima agora com força, fustiga a pele branca, os conspiradores sucedem-se um a um na matança, cheira a queimado: é Roma que está a arder? Ainda não.
Et tu Brute? Quem eu? Pergunta o surfista ao instrutor. As ondas estão rasteiras e faço uma ou duas carreiras, if you listen carefully now you will hear, Quem eu? O homem das bolas passa junto ao corpo de César que tem a cara tapada com o manto: Olhá boliiiiiiiiiinha!
Estou na areia e assisto à cena toda: os surfistas a sairem da água e os senadores a fugirem pelo mar adentro. O sol está agora a pique e arde ainda com mais força. O cheiro a queimado intensifica-se, é Roma que está a arder? Ainda não, é a Serra do Caldeirão. Passo por entre a multidão que ouve a elegia de Marco António a César e sigo para a cidade.
Na rua do Hotel Albacor os plebeus lançam fogo à casa dos senadores homicidas, um cheiro doce e quente invade-me as narinas, é Roma que está a arder? Não, são bolas de berlim acabadas de fazer. Guiltiness, pressed on their conscience, as bolas a esta hora desfazem-se na boca de um indivíduo, Bruto cai sobre a própria espada, nham, nham, nham, César foi vingado.
Ah! Billy, Billy, tu é que as sabias escrever. Quem eu?

#313

| segunda-feira, 13 de agosto de 2012 | 7 comentários |

- Já não há esquerda nem direita, só existe em cima e em baixo. E nós não estamos em cima.
- Estamos onde?
- Adivinha!
-  Sempre ouvir dizer que o que está em cima é igual ao que está em baixo.
- Achas? Isso é porque tens a espinha tão dobrada que já só vês o teu umbigo.
- E os políticos, onde estão eles?
- Quais políticos? A politica é uma fase transitória na vida dos sanguessugas. É um processo: agora estão em baixo e de repente já estão em cima.
- E como conseguem eles isso?
- Usam as tuas costas como trampolim.
- Que ousadia, quem lhes deu autorização?
- Tu.
- Arghhhh, sinto-me revoltado, tão revoltado que só me apetece sentar um bocado a ver televisão. Mas espera, o que é aquilo a cruzar os céus, será um comboio, será o super-homem?
- Nada disso: é  o anão voador do outro post.

Km 40*

| quinta-feira, 2 de agosto de 2012 | 10 comentários |

Ao chegar ao quilómetro 40, Romualdo encostou à berma. Parecia perdido. O mapa não lhe dava indicações nenhumas que o ajudassem a localizar-se e a estrada parecia a mesma de sempre: para trás pouca coisa, para a frente coisa nenhuma. A paisagem impunha-se pela aridez desértica. Um cacto ou outro, meia dúzia de pedras, vida quase nenhuma.
- O que acham? Seguimos em frente ou damos meia volta? – Meia volta era impossível, comunicou Abrenúncio, que embora tivesse feito a viagem a dormir, mostrava ter estado alerta: a estrada era de sentido único. Ildefonso lembrou que o combustível estava quase no fim. Não é só o combustível que está quase no fim - anunciou Romualdo – a minha paciência segue pelo mesmo caminho.
Podíamos ficar por aqui – sugeriu Labregoísio.
Ficar não era uma opção reclamou Romualdo. Ouve quem lançasse para o ar a ideia de apanhar boleia. Ir de boleia é fazer batota, lembrou Abrenúncio, não há esforço, não dá luta, e além disso quem lhes daria boleia com aquele aspecto sujo e mal barbeado.
Por fim Romualdo decidiu que não havia nada a decidir, deu à chave e arrancou numa nuvem de poeira que, suspensa no ar, dir-se-ia auspiciosa.
Aproveitemos para celebrar, concluiu Abrenúncio, augura-se um bom quilómetro. Beber é sempre um bom remédio e a única maneira decente de se conseguir ficar bêbado.
Brindaram – Que se levante a poeira e que esta merda ande de vez.


*metáfora roubada descaradamente ao Dytonisius

É como um vento que sopra dali para aqui

| quarta-feira, 25 de julho de 2012 | 5 comentários |

Quando se põe este levante, há um vetusto sentimento que se apossa de mim. Algo que vem de longe, de uma outra época, algo tão distante quanto o sangue árabe que nestas alturas me parece efervescer. É então que surgem as ideias esquisitas e só me apetece vestir um colete armadilhado e ir explodir para a praia. É uma coisa linda de se ver, a explosão: a separação brutal das células, a carne que se estica até sair estilhaçada do corpo; há pedaços de mim espalhados sem tino por todo lado. Ali a boiar nas ondas é uma gaivota que me debica; mais à frente nos meio das pedras é um caranguejo que me carrega. Há pedaços de mim no meio da estrada a serem espezinhados pelos turistas; um verdadeiro festival de sangue, tripas e carne dilacerada. O escândalo sucedeu-se quando um bom bocado de mim acertou em cheio na boca de uma virgem, que se bronzeava às escondidas entre as dunas, partindo-lhe um incisivo. A princípio ninguém quis acreditar pois parecia mesmo impossível: virgens no meio das dunas.   

#310

| sexta-feira, 20 de julho de 2012 | 4 comentários |
Arde lá fora,
Arde cá dentro
Não há lágrimas suficientes:
Tudo se consome.

A Matriz

| quinta-feira, 19 de julho de 2012 | 8 comentários |

- Morpheus, ó Morpheus…Desatarracha-me lá esta merda do pescoço que eu quero ir p’ra casa.
Foi assim que Abrenuncio saiu do Matrix. Estava cansado e desiludido. Na matriz tudo era ilusão e propaganda. A vida era superficial e passavam-se os dias em anestesiada correria contra o tempo. Há que competir, produzir e consumir para se poder produzir, consumir e competir: este era o mote. No Matrix, a felicidade era o pote de ouro que estava sempre mais além, sempre um passo mais à frente, inatingível, qual miragem no deserto.
A realidade lá fora é mais feia, suja e ainda mais dolorosa, diziam eles, o Matrix é a única solução para uma vida de sonho passada a sonhar. O Matrix era a cenoura que fazia andar o burro.
Abrenúncio descortinou a manha do programador (ou não fosse ele o Escolhido) e viu a matriz pelo que esta era: um condicionamento, um controle absoluto, uma ditadura dos outros.
Nô mais matriz, nô mais – Pediu Abrenúncio – Estou cansado e quero ser feliz.
E por isso se pôs a gritar: Ó Morpheus, pá…

Uma História Simples

| quarta-feira, 18 de julho de 2012 | 4 comentários |

Uma história feita de palhaços e de circo. De anões voadores e eunucos amestrados. De princesas gordas e elefantes de estimação. Uma história simples; com trapezistas que caiem de costas e ficam magoados no pénis. Do mestre de cerimónias que tinha fobia a multidões e gaguejava muito quando apresentava os números fazendo com que as pessoas pensassem que a sua gaguez era ela também parte do número. Da contorcionista que um dia estando aborrecida torceu-se toda de forma a praticar cunnilingus nela própria. Do Leão que se recusava a comer carne e emagrecia a olhos vistos. Do palhaço pobre que também se recusava a comer carne e que toda gente pensava que era porque estava em solidariedade com o leão quando na verdade era por estar apaixonado pela princesa gorda. Da própria princesa gorda que comia a carne que sobrava dos outros e que um dia confundiu o palhaço pobre com um palito e usou-o para limpar os dentes. De como o eunuco amestrado foi uma vez encontrado a folhear as revistas pornográficas do montadores de tendas e toda a gente se riu muito; pois se era eunuco e amestrado para mais. De como o unicórnio cor-de-rosa invisível um dia bateu as asas e nunca mais foi visto, deixando a filha mais nova da mulher barbuda muito triste pois era com ele que gostava de brincar às escondidas.  De como o engolidor de fogo se engasgou uma vez com um copo de água e toda a gente lhe bateu violentamente nas costas. Do infeliz acaso em que o atirador de facas se distraiu a olhar para as pernas da mulher do mestre de cerimónias e acertou sem querer com uma faca num dos anões que passava por ali a voar. Do elefante de estimação que cada vez que lhe pediam para dar a patinha esmagava alguém e era por isso que ninguém lhe pedia para rebolar. 
Uma história de família portanto, mas também de amor e comunhão, naquele que foi considerado um dia o maior espectáculo do mundo.

#307

| segunda-feira, 16 de julho de 2012 | 9 comentários |


E pronto, com um simples clique arruma-se tudo. Desliga-se a visão, o tacto, o cheiro e o paladar. Tudo o que acaba rápido começa com um lento premir do dedo; seja no gatilho ou no telecomando. Desliga-se a máquina de suporte vital, desliga-se o coração, desliga-se o despertador. Tudo no mundo se desliga.
Despertador: eis um nome bem colocado. Todos os dias, somos arrebatados violentamente do mundo acolchoado do sonho, e acordamos ansiosos para o sofrimento reciclado: despertamos para a dor.

Pegadas na Areia

| quarta-feira, 11 de julho de 2012 | 2 comentários |

- ...Olho para trás e qual não é o meu espanto quando só vejo um par de pegadas na areia. Onde é que estavas tu quando eu mais precisei de ti?
- Ah, foi nessa altura que eu carreguei contigo ao col…
- Outra vez essa história de andares comigo ao colo, mas tu pensas que eu sou parvo ou quê?
- Mas é uma metáfora tão bonita.
- Metáfora? Querem lá ver que agora deste em lírico?
- A bem da verdade se diga que eu estive sempre contigo nos momentos mais dific…
- Tangas!
- Porque me arrenegas?
- Sabes onde é que tu estavas quando eu precisei de ti na Páscoa?
- ???
- A beber copos e a comer pão com os teus amigos.
- Mas isso foi na última ceia.
- Deixa-te de teorias. É verdade ou mentira?
- Bem… Tenho que confessar que falas a verdade.
- Eu sabia.
- O que posso fazer para te compensar?
- Quero um iphone.

Voo Nocturno

| terça-feira, 10 de julho de 2012 | 6 comentários |

Ildefonso tinha uma tara que muito desagradava a sua esposa: andar de bicicleta à noite. À hora que as pessoas normalmente se iam deitar, depois de se despedirem no facebook, àquela hora em que já começa a fazer fresquinho, era quando Ildefonso agarrava na bicicleta e desatava a pedalar rua acima, rua abaixo. Era um prazer como outro qualquer, explicava ele à mulher, gostava de sentir o vento nocturno roçar-lhe a fronha.
Hoje vou inovar, Maria, e nisto agarrou no velocípede e saiu de casa. Maria não prestou muita atenção, embrenhada que estava a copiar frases inteligentes do Citador, mas depois, como se acordasse violentamente de um sonho, resolveu ir à janela para ver o que é que o marido queria dizer com aquilo do inovar.
Ai! - Exclamou Maria da varanda ao ver Ildefonso percorrer a rua, em alta velocidade, montado na bicicleta: todo nú. Ildefonso, não podia estar mais contente, era um antigo sonho que finalmente concretizava. Sentia-se como se atravessasse as nuvens a alta velocidade com o vento a sacudir-lhe o corpo inteiro, é o que há de mais parecido com voar, pensou com os botões que não tinha. Maria praguejava baixinho, volta para casa cabrão, volta imediatamente para casa, apetecia-lhe gritar mas continha-se devido às avançadas horas da noite.
Numa das indas e vindas vertiginosas de Ildefonso, eis que a roda da frente se prende numa brecha do asfalto (posta ali pelos deuses da coincidência) fazendo a bicicleta empinar e cuspindo violentamente Ildefonso para o ar. Nisto, vinha o vizinho do rés-de-chão a chegar casa, depois de ter levado a passear o caniche irritante, quando vê Ildefonso passar por ele num voo arcado, de badalo ao léu e sorriso na cara. Boa noite vizinho, cumprimenta Ildefonso. Nem o vizinho, nem o cão retribuiram o cumprimento, quedando-se apenas boquiabertos no meio do passeio.
No primeiro andar, Maria, de mãos na cara, aflita, não se contém e deixa escapar em voz alta, Ah! desgraçado, ao menos cai de costas.

Misturas

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Não há muito mais que fazer disse-me ele, é tudo uma questão de como se mistura o vodka. Em quantidades exageradas provoca sonolência acompanhada de instintos violentos e autodestrutivos, por outro lado, em fraca quantidade torna-se num sumo forte e acabas por beber mais do que a tua conta. Há que descobrir a via do meio - como o Buda? - Exacto. Anular todas as paixões, todas as expectativas, procurar viver na verdadeira ataraxia. Como o vodka bem misturado? Aprendes rápido jovem gafanhoto, lembra-te sempre do velho ditado tibetano: se procuras deus, mistura bem o vodka.

O Altruísta

| segunda-feira, 9 de julho de 2012 | 7 comentários |

“Yet each man kills the thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!”

Oscar Wild – The Ballad of Reading Gaol



Peguei na máquina fotográfica e saí de casa com alguma urgência. Desatei a disparar a torto e a direito, indiscriminadamente: pessoas, animais, casas. Fotografar casas não dá tanto gozo como fotografar pessoas. As casas não se desviam, nem se agacham, nem gritam: vai fotografar a tua mãe, cabrão.
Só comprei a máquina fotográfica porque não me venderam uma caçadeira. Um pequeno azar para mim, uma grande sorte para o mundo dizem vocês. Discordo. A máquina isola, congela e eterniza: a pessoa não morre mas fica ali para sempre, naquela posição, presa em duas dimensões, sem voz, sem cheiro, sem sabor; parada no tempo, todos os dias. Se alguém se chegasse ao pé de mim e me perguntasse: olhe desculpe, o senhor prefere ser fotografado ou levar com um tiro de caçadeira à queima roupa mesmo em cheio nos intestinos? Eu cá prefiro o tiro de caçadeira, diria eu sem pestanejar, quem é que quer ficado parado no tempo? O indivíduo tem que se mover para a frente, tem que se renovar, a sua felicidade depende disso.
Foi imbuído desse espírito filantropo, dessa vontade altruísta de ajudar a sociedade, que eu tentei comprar a caçadeira, mas recusaram-me essa vocação missionária. Por isso fotografo, anonimamente. As pessoas que me vêem passar, nem imaginam, que quem ali vai, só lhes deseja o bem.

A Bomba

| sábado, 7 de julho de 2012 | 3 comentários |

Quando lhe pediram para construir a bomba atómica, ele construiu a bomba atípica. Era uma bomba que não explodia. Lançava-se na terra e ficava ali, apática de tudo e de todos, uma bomba sem aptidão para a maldade. Passado algum tempo as pessoas habituavam-se à presença da bomba e deixavam de lhe prestar atenção; era mais um bibelot enorme que estava espetado no meio do jardim. Os namorados beijavam-se na sua sua sombra e as criancinhas usavam-na como escorrega. Era uma bomba feita para a paz, portanto.
Um dia falaram-lhe de Oppenheimer e no papel relevante que este teve na construção da bomba atómica. Esse Oppenheimer é um mariconço, retribuiu o cientista, fazer bombas para destruir, qualquer um faz; agora um bomba de inércia, uma bomba que pode ser usada por crianças, adultos e idosos, uma bomba de brandos costumes, quem é que criou? Quem? Eu!

#300

| sexta-feira, 6 de julho de 2012 | 2 comentários |
- ...É uma espécie de tristeza que se cola aos braços. Depois sobre pelos ombros e dispersa-se pelo corpo todo. É como uma película fina e branca nos olhos, que nos impede de ver decentemente...
- Como as cataratas?
- Sim, mas com menos água.

Na Praia

| quinta-feira, 5 de julho de 2012 | 10 comentários |

Na praia não há enganos. O que está ali é aquilo mesmo: a praia. Há a água, areia e sol. Também há sol na cidade e no campo, dizem os especialistas. Sim, é verdade! Mas na praia o sol sente-se mais em casa, faz parte do pacote.
Na praia não há mentira nem dissimulação. Ninguém diz que tem frio quando está calor. O céu é azul e a areia é branca, e é assim que tem de ser, não nos serve de nada dizermos o contrário. Para quê? As ondas enrolam-nos porque está na natureza delas enrolarem, se não enrolassem, não eram ondas.
Andamos semi nus na praia para deus nos ver melhor, para lhe mostrarmos que já não temos medo dele. Estamos aqui, dizemos, e agora? Roçamos corpos e cometemos o pecado original vezes sem conta. Só existe um pecado: não ser original. E deus, envergonhado vira a cara por segundos. Cada segundo de deus corresponde a um milénio na Terra.
O que eu gosto mais na praia é da cerveja.

Mansos e Drogados

| sexta-feira, 29 de junho de 2012 | 5 comentários |

Acabou a febre da bola. Ficou só a febre. A, cada vez mais dolorosa, existência; a perturbante sensação de mesquinhez perante algo ou alguém que não se compreende e que nos esmaga diáriamente, sem vaselina.
A galáxia rodopia indiferente: braços estendidos ao universo, leite vertendo na noite escura. É onde vivemos, num desses braços. Grão de poeira suspenso num pedaço de luz. É tudo o que se poderia pedir: um lugar cativo numa viagem circular, sentados à beirinha, para podermos molhar a ponta dos pés no cosmos, e expandir-mo-nos, mas desta vez só em pensamento.
E no entanto ela gira, e o que nos sobra desta liberdade estonteante que recebemos de presente logo à nascença, é uma vil tristeza e malfadada existência, carregada de ignomínia e afronta.
Dão-nos um papel para decidirmos das nossas vidas e depois atiram-no com ele à cara. Insultam-nos.
Chamam-nos brandos, acomodados e até bons alunos...que insulto. Enchem-nos até às orelhas de fait-divers e de outras minúcias futilidades e conduzem-nos para o matadouro, mansos e drogados, como um boi sacrificial. Morrer assim: não sei se é castigo se é libertação. É a vida, dizem eles, tem que ser, dizem outros, ai o fado, o nosso rico fado, e assim nos levam: mansos e drogados.
E não há um único David que surja de funda ao alto, e espete com uma valente pedrada no olho do cú que estes gigantes trazem no lugar da cara.
Na aldeia global somos todos filisteus.

um dia um homem cansa-se

| quinta-feira, 31 de maio de 2012 | 10 comentários |

Jogava sempre com duas chaves e os resultados saíam-me sempre ao lado. Eu explico, saía sempre o número ao lado daquele que eu escolhia. Cedo delineei um método infalível baseado nesta minha descoberta teórica da lateralidade: comecei então a jogar com três chaves. A primeira e original, a segunda só com os números ao lado da primeira e a terceira com os números ao lado da segunda. Não por sorte ou azar, por sarcasmo apenas, digo eu, começaram a sair os números ao lado dos números ao lado do números ao lado. Seria o destino a rir-se de mim?
Eu, um não crente da providencia, um apostador do caos, de imediato urdi um plano para fintar a aparente ironia poética desse tal destino parvalhão. Optei pelo cerco, a jogada mais paciente ainda que aparentemente desesperada: joguei com uma chave ao centro e as outras com os números todos à volta. O boletim era um massacre, havia cruzes por todo o lado. Nada! Gastei uma fortuna, duas até, e não me saiu nada. Cheguei a comparar-me com aquele homem da televisão que apostava sempre no vermelho e saía-lhe sempre o preto. Deixar de jogar era fácil, e talvez uma das melhores coisas que faria na vida, o meu médico havia de gostar, mas não me conformo. Estou obcecado, tem de haver uma saída, as combinações são incontáveis mas não são infinitas; é só apostar ao lado do lado do lado do lado do lado... A ansiedade só por si é o suficiente para me matar. Mas não pode ser, tenho que continuar, estou viciado. Sou um masoquista ao fim de contas. Um dia pode ser que me canse