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Exit

| segunda-feira, 31 de agosto de 2009 | 4 comentários |


«Não existe saída deste deserto, pois não?» perguntou Anacleto ao tuaregue. «Enquanto estiveres armado em camelo, não!» respondeu o tuaregue que era formado em altas filosofias e matemáticas, mas que de caminhos só conhecia um, o seu. Entretanto sentou-se e iniciou um conhecido ritual, - estava na hora do chá.
«Chá de menta?» ofereceu a Anacleto que aceitou de pronto. «Andas a dormir estrangeiro Anacleto. Estás a dormir agora mesmo; procuras uma saída no deserto e olhas para mim quando devias era olhar para ti próprio...» o outro continuava a olhar para o “Abandonado de Deus” naquela forma que era peculiar aos bois quando defronte de palácios. Beberam o chá e sentiram-se melhor, mais frescos. «Devo então seguir para ocidente portanto» balbuciou Anacleto tentando mostrar-se entendido no assunto. O tuaregue, cansado de tanta teimosia, jogou a mão ao alforge e retirou de lá um bússola que entregou ao ocidental. «Toma, é tua, deve chegar para encontrares a saída». De pé, Anacleto segurou a bússola na palma da mão e constatou de imediato que esta estava avariada: para onde quer que se virasse a seta apontava sempre para ele.

O Desacato

| quarta-feira, 26 de agosto de 2009 | 0 comentários |


Um dia, estavam todos a reunidos, numa festa de anos ou noutra ramboia qualquer, quando o mago a título de piadola, transformou, para pasmo geral dos convivas, a água em vinho. Erro crasso número um. Aquela malta gostava mais de vinho do que da própria mãe, havia até quem fosse capaz de a trocar por um jarro do belo néctar. A principio tudo correu bem, enquanto foram só anedotas e boa disposição, mas depois começaram a dissertar sobre política e aí a situação azedou. Uns era a favor da ocupação romana, por mór do comércio, do cosmopolitismo e da estabilidade que era viver entre os mais modernos dos homens. Ah, mas os outros, os que não queriam os estrangeiros entre eles, arengavam desditas sobre a falta de respeito dos ocupantes pelo deus único, pelos seus costumes, e ainda havia os impostos, os malditos impostos. E as mulheres que eram obrigados a sofrer com os piropos execráveis dos legionários? Lembrou outro. Não podia ser. «A tua mulher parece não se importar, até gosta» lançou um dos partidários de César. Foi a gota de água, que transbordou o copo de vinho. Num ápice começaram cadeiras a voar e partiram-se jarros de forma a adaptá-los em objecto cortante. O dono do estabelecimento, vendo o prejuízo crescer a cada segundo, apelava à calma sem resultados positivos. O mago, exibindo um ar superior virou-se para o comerciante «eu vou-te mostrar como isto se faz», e nisto pôs-se no meio da confusão de braços abertos. «Ordeno-lhes que parem em meu nome!» Nem chegou a ver a cadeira que o atingiu na cara e lhe partiu o nariz. A partir daí, encolhido no chão, e como não tinha opinião sobre a matéria, apanhou dos dois lados. Ficou muito mal tratado.
Quando o Centurião exigiu que lhe explicassem como todo aquele desacato havia começado, disseram-lhe simplesmente que, aquele que jazia inconsciente no chão tinha transformado a água em vinho. «Patranhas!» rosnou o Centurião. O que é certo é que a história se espalhou e transformou-se como o vinho, e ainda hoje os povos se espantam com o maravilhoso feito.

A Massa Informe

| segunda-feira, 24 de agosto de 2009 | 4 comentários |

Olhou para o fim da rua e, onde antes batia o sol matinal, na parede caiada da tasca do caldo verde, havia agora uma roda de movitrons, paredes meias com contentores de lixo em cima dum inexistente passeio. Arrghhh!!! a raiva que aquilo lhe dava. Um pouco mais abaixo, o largo e as suas árvores. O largo já não era largo, era um parqueamento de movitrons, e as árvores, parquímetros. Havia-os em toda a parte. A Cidade pouco a pouco foi desaparecendo, dando lugar a uma massa informe de metal, borracha e fibra de vidro, toda envolta numa névoa pestilenta e venenosa. Os cidadãos sem se aperceberem, apesar de serem coniventes, acabaram com a vida na Cidade, entregando-se a uma espécie de existência amorfa, como ratos num labirinto que começa mas nunca acaba. Ah! Pensava o homem, se havia Cidade merecedora dum castigo bíblico era aquela. Um dilúvio para limpar as ruas, um terramoto para abalar as suas fundações e no fim, o proverbial fogo celestial para purificar toda a minha gente. Riu-se do alto do seu ateísmo: eis uma prova da inexistência de Deus, a existência desta Cidade. Não se coibia de fantasiar sobre os castigos a infligir aos habitantes da Cidade, divinos ou não. «Cometemos o mais grave dos oito pecados mortais – o da Estupidez.»

O Farol

| quinta-feira, 20 de agosto de 2009 | 0 comentários |

Pessoalmente sentia-se um farol. De olhos abertos à noite alertando as almas perdidas para que não se aproximassem muito dos vivos. Passava as suas temporadas de vela assim; de braços abertos, estático, a falar com os mortos. Os mortos visitavam-no à beira da cama todas as noites e faziam-lhe companhia. Discutia sobre política, e outros assuntos que interessavam aos mortos. Não percebia nada de futebol, nem sequer se interessava pelo jogo, mas começou a ler os jornais da especialidade só para ter o que dizer à noite. Os mortos gostavam de bola. Às vezes os mortos perdiam-se pelo caminho, e não dariam com ele não fosse a luz dos seus glezes insones iluminar toda a noite penada. Os vizinhos queixavam-se do barulho das cadeiras a arrastar e da conversa que se prolongava até de madrugada, às vezes chamavam a polícia. A sua reputação no prédio já não era das melhores, e aquelas temporadas zombie só o prejudicavam ainda mais.
Só descansava uma vez por semana, ao domingo. Que era o dia em que os mortos visitavam os seus familiares. Era também o dia em que se sentia mais só.

A Obra Prima

| quarta-feira, 19 de agosto de 2009 | 2 comentários |
Ildefonso procurava todos os dias a inspiração para o seu grande surto criativo. A grande obra, aquela que faltava ser escrita, ia ser a sua obra prima. Todos os dias ia beber café ao mesmo sítio. Sentava-se sempre na mesa do fundo. Fumava cigarros e observava a vida acontecer à sua frente. Queria captar a realidade das emoções, o instante da angústia, a iminência do sofrimento. Tinha um bloco preto onde tirava apontamentos e anotações sobre personagens e enredos. Às vezes descrevia momentos caricatos que se desenrolavam à sua frente; o casal que desmanchava o namoro, a mulher que apanhava o marido a olhar para as pernas da empregada de mesa, o jovem que saía de fininho sem pagar a conta. Inúmeros cafés depois e muitos cigarros fumados, voltava para casa onde jantava e ficava o resto da noite a rever os apontamentos. Por mais que uma vez sentara-se à máquina de escrever e iniciara a escrita daquele que iria ser o maior romance da história, mas, como as duas primeiras linhas nunca estavam à altura de tal epíteto, depressa rasgava a folha e ia deitar-se. Rasgava muito Ildefonso. Mais que um escritor, Ildefonso era principalmente um rasgador. Mais que rasgador era ainda um sonhador. Chegava a manhã e Ildefonso retomava a sua rotina. Desfazia a barba, vestia-se muito aprumado e seguia para o seu posto de vigia. Muitos cafés, muitos cigarros, muitos apontamentos depois retornava ao remanso do seu canto. Havia ainda muito que rasgar até o parir da obra-prima.
No café, as pessoas viam aquele homenzinho, aquela fraca figura, a fumar, a beber café e a tirar apontamentos muito nervoso e tinham pena dele; da sua solidão. Chamavam-lhe “o maluquinho”. «Qualquer dia mata-se» afirmavam alguns, «E não deve tardar muito» alvitravam outros. «Desde que não seja cá dentro,...» rematava sempre o dono do estabelecimento.

A Carta

| terça-feira, 18 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Todos os dias ao sair de casa, Abrenúncio abria a caixa do correio e examinava-a rigorosamente só para chegar à conclusão que a carta ainda não tinha chegado. Depois do dia de trabalho, quando regressava ao lar, abria novamente a caixa e com a mão perguntava ansioso pela carta mas a resposta da caixa era sempre o vazio. O carteiro podia tocar sempre duas vezes, mas quanto a passar pelo mesmo sítio, só passava uma. Às vezes saía para correr; o jogging solitário fazia-lhe bem, arejava-lhe as ideias e regulava-lhe a ansiedade. Ansiedade esta que voltava imediatamente quando, antes de entrar em casa, Abrenúncio voltava a conferir a caixa postal. Mesmo ao fim-de-semana, mesmo sabendo que o carteiro estava de folga, Abrenúncio procurava pela carta. Eu, que estou a escrever este texto, sei com certeza absoluta que a carta nunca chegará, mas Abrenúncio é movido por uma força própria. Uma força que tem origem na esperança ou talvez no desespero. Não sei dizer.

Coragem

| segunda-feira, 17 de agosto de 2009 | 0 comentários |

Escreveu a carta de despedida e foi embebedar-se para o bar para ganhar coragem de a entregar. Começou com shots de whisky perseguidos por imperiais e acabou na coboiada que era o vodka gelado só com umas gotas de limão. Era o aniversário de alguém mas a partir de uma certa altura era ele que mandava vir e pagava as rodadas. Cantou com a banda residente e dançou apertado com as bailarinas de serviço. Toda a gente lhe dava palmadinhas amistosas nas costas e em pouco tempo arranjou um grupo de novas amizades etílicas. Ao fim da noite, já descamisado, sorvia shots de gelatina em cima da barriga lisa de uma jovem cujo nome ignorava.
No outro dia acordou como se tivesse presidido ao apocalypse. Não se lembrava de absolutamente nada da noite anterior, apenas da carta que continuava em cima da escrivaninha. Meteu-a no bolso e foi direito ao bar; precisava urgentemente de duas coisas: matar a ressaca e ganhar coragem...

Workout

| sexta-feira, 14 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Meteu-se-lhe na cabeça que se exercitasse o corpo o suficiente para se transformar numa espécie de Deus grego, acabaria por encontrar a sua alma gémea. Vai daí, todos os dias corria que nem um louco à volta do quarteirão, levantava pesos à bruta, fazia flexões animalescas e abdominais dignas de um Tarzan. Esforçava o corpo para além dos limites aceitáveis, mesmo pela Confederação Nacional de Esforçadores de Corpo. Tinha que se manter em forma para quando a encontrasse. Sentia que o dia estava perto, e como tal, cada vez corria mais, cada vez mais rápido, como se quisesse apanhar o dito dia um pouco mais à frente. Chamemos-lhe ironia do destino, ou coincidência se quisermos ser mais cépticos, mas, o que é certo é que o dia chegou rápido. Andava ele a passear/exibir-se no shopping de Parvalheira City, quando no meio da multidão eis que ela se aproximou em câmara lenta com os olhos postos nele, como se também ela há muito o esperasse. Chegaram-se perto um do outro, quase à distância de um beijo esquimó e sorriram enternecidos. O coração dela acelerou muito ruborizando-lhe as faces. O coração dele acelerou muito e parou.

O Dom

| quinta-feira, 13 de agosto de 2009 | 0 comentários |
Felisberto nascera com um dom peculiar. Não conhecia a dor. Os médicos bem lhe deram umas valentes palmadas, mas ele, limitou-se a sorrir. O sorriso era outro dos atributos que diferenciava Felisberto do mais básico dos bípedes. Era como que redentor. Tinha propriedades regeneradoras e curativas. Quando alguém ficava muito doente lá no bairro, logo clamavam por Felisberto para que viesse acudir. E Felisberto acudia. Bastava-lhe chegar-se perto do enfermo, dizer-lhe uma ou duas palavras de consolo,sorrir como só ele conseguia e pronto. Ora, a palavra cedo se espalhou pela Cidade e a vida de Felisberto tornou-se num corrupio.Toda a gente se aproveitava do dom de Felisberto; dos mais ricos aos mais pobres. E assim lá ia fazendo a sua vida; sorrindo. De manhã, ao acordar, ia sempre à janela cumprimentar o astro-rei, e, logo se deparava com uma multidão de boémios, foliões e outro tipo de marialvas que ganharam o hábito de dormir por debaixo da varanda de Felisberto. Era matemático. Um sorriso e, adeus ressaca. Nas campanhas eleitorais era também muito solicitado pelos autarcas, para que sorrisse aos munícipes em vez deles. As eleições resultavam invariavelmente num empate mas nunca ninguém se aborrecia com o sucedido. A felicidade de Felisberto era uma espécie de poção mágica que abrangia toda a Cidade.
Um dia porém, andava Felisberto a passear pelos jardins da Cidade quando foi acometido por uma urgente necessidade natural. Como não houvessem balneários por perto, decidiu aliviar-se, ali mesmo, atrás de um belo arbusto. Ah! O alívio imediato. No entanto, quando puxava incauto o fecho das calças para cima, um incidente ocorreu: Felisberto prendeu a pila. Uma dor lancinante (que o fez ver: primeiro branco, depois todas as cores do arco-íris) percorreu-lhe a espinha. Com as lágrimas a rolarem-lhe copiosas pela face, Felisberto sentiu que algo havia mudado radicalmente na sua vida. No dia seguinte, ao acordar com a maior ressaca da história, a Cidade constatou o mesmo.

O Diálogo

| quarta-feira, 12 de agosto de 2009 | 2 comentários |
-Então e agora?
-Agora? Nada. Agora merda.
-Como é que te vais safar?
-O futuro? Oh pá, sabes que a merda do futuro é não sabermos onde ele começa. Se eu soubesse do futuro não estava aqui, por outro lado, estar aqui é concretizar o futuro de ontem quando ainda era presente, antes de se tornar no passado de hoje, percebes?
-Não.
-Pois pá, é uma merda. A mim o que me apetece é entrar por ali adentro, de lança-chamas na mão e mostrar-lhes o inferno que há em mim...Depois eles logo viam“Ah! quem diria, era tão bom rapaz”. Bom rapaz, pfff...Eu sou é um animal enjaulado.
-Um bocado radical não? E violento.
-Radical o caraças,...um gajo se não diz nada é porque é parvo, mas depois vai acumulando, acumulando e, quando já não aguenta mais,... lá está, é radical.
-Já tentaste a via legal?
-A via legal? Ahahaha. Olha, o Romualdo 'tá aqui embaixo há um tempão e até agora não encontrou culpados. Achas isto normal...a justiça, tsss, a justiça é como o caviar, só sabe bem aos ricos.
-Devíamos ir embora, as pessoas já começaram a reparar.
-Pois. Isto de falar sozinho só atrai homenzinhos de bata branca.

A Culpa

| terça-feira, 11 de agosto de 2009 | 0 comentários |
De quem era a culpa? Era a pergunta que se impunha e que Romualdo tardava em responder. Em primeira instância a culpa não era de ninguém. A ser de alguém só podia ser de Deus, o grande criador e iniciador de todo este movimento perpétuo de atribuição de responsabilidades. No parecer introspectivo de Romualdo, a culpa apresentava-se em vários patamares ou círculos como no Inferno. A culpa pode começar no patrão, como observou Romualdo a certa altura, mas acaba sempre no empregado, que, bem domesticado, arca com toda a culpa e suas consequências, convencido de que este será um acto maior de dignidade. Pobre coitado que só na ignorância é honrado.
Romualdo revolveu e voltou a analisar todos os depoimentos, mas a dúvida não o largava. Como descobrir a culpa numa sociedade onde ninguém é culpado? Seria a culpa da senhora que não viu o carro em excesso de velocidade? Seria a culpa dos operários que pintaram mal as passadeiras? Seria a culpa do homem que vinha ao telefone e não viu o sinal de aproximação de passagem para peões? «Ah!» Suspirava Romualdo «não há solução».
«A culpa é de toda esta gente, quem é que lhes mandou nascer?» alguém, a quem o chá havia esfriado, gritava a sua indignação. «Pois pá, estes gajos nem deviam ter nascido com olhos, por isso calem-se e vão para casa» - Agora era o enfadado proprietário de um veículo topo de gama que se exaltava no engarrafamento. Romualdo tirava apontamentos no seu bloco de notas feito de medida para dilemas obscuros. Olhava nervoso em volta, enquanto secretamente desejava que de súbito surgisse uma qualquer entidade superior, uma deidade, que o livrasse daquele imbróglio, daquela dúvida. Um mordomo seria o ideal.

Os Carimbos

| segunda-feira, 10 de agosto de 2009 | 0 comentários |

O comboio transpõe o recorte das altas montanhas e Anacleto sente finalmente o embate da realidade. A estúpida da realidade, a acelerar nos carris, a desbravar sonhos e aventuras. Arrepia-se-lhe a pele. Pressente o regresso à sua condição de burocrata acinzentado, e isso entristece-o sobremaneira. Olha para as unhas amarelas do tabaco e ri-se da ironia por estas combinarem com as amareladas paredes do arquivo, onde são guardados todos os papéis químicos do mundo, junto com os duplicados de todas as coisas aborrecidas do mundo que foram inventadas para castrar todas as pessoas alegres do mundo. Anacleto tropeça num companheiro viajante e pede-lhe desculpa, depois repete o pedido. É a transformação que começa a dar-se; tudo em duplicado. «Com licença, com licença» a primeira via pode extraviar-se é sempre bom ter um comprovativo. A voz rouca e a poeira nos sapatos são os últimos indícios dum sonho que foi curto. Agora está na hora de lavar a cara, apertar a gravata; o mundo precisa de documentos, de ofícios, de questionários de inquéritos, de dossiers e de muitos funcionários, muitos, todos armados com tinta da china, preparados para carimbar a humanidade até à última réstia de bom senso.

O Exílio

| quinta-feira, 6 de agosto de 2009 | 0 comentários |

O suave espraiar das ondas debela lentamente as fundações do castelo. A areia que o fortifica esvai-se a cada espumoso abraço do oceano. Os aldeões, unem esforços coordenados para travar o assassino avançar da natureza. O que é preciso para salvar a fortaleza? Areia molhada. Onde a encontramos? Junto ao mar. Pois!
Dão tudo de si estes bravos operários do inevitável. A sua fé deteriora-se no minuto seguinte mal vêem o seu esforço ser ignorado pela bruteza do mar.
Aos poucos começam a desertar de si próprios: para quê? Questionam-se. O mar é sempre o mesmo e não vai mudar por nossa causa.
«Isto é um trabalho para Gulliver!» grita um. «Ah! Isso são histórias da carochinha, ninguém vai aparecer, nunca ninguém aparece, estamos sozinhos outra vez.»
Ordeiros, em pequenas filas, abandonam o castelo que finalmente se esvai na maré. Dizem adeus às armas e seguem por caminhos diferentes.
«Foi bom enquanto durou!» afirma um. «Achas mesmo?» dúvida outro mais céptico. Dúvidas, receios, interrogações; tudo sentimentos que povoam a multidão de exilados que se dispersa pelas dunas. É toda uma procissão de degredados que abandona a costa, mas, àquela distância ninguém nota.

O Enfermo

| terça-feira, 4 de agosto de 2009 | 4 comentários |
Absorto na sua enfermidade quasi paralisante, Abrenúncio nem deu por ela chegar. Com os seus pezinhos de chinesa e modos de gueixa, tratou-o com a delicadeza de um ser etéreo que se nos escapa quando tentamos agarrá-lo. Esteve com ele, como se está com as pessoas doentes, permitindo-lhe todos os humores e desvarios. Foi mais que sua enfermeira. Foi todas as mulheres da sua vida, não sendo nenhuma. Concentrava-as todas numa só. Às vezes, noutros tempos e noutros lugares, encontrava-a sempre bem acompanhada de mancebos que, talvez estivessem doentes ou não. E só por isso, reservava-lhe um pedacinho de rancor por entre ventrículos e aurículas. Queria defini-la numa palavra, mas a única que lhe surgia amiúde era: saudade. Como não havia forma de a descrever nem sequer de a entender, referia-se a ela como: aquela-que-não-me-é-nada.

Like Tears In The Rain

| segunda-feira, 3 de agosto de 2009 | 3 comentários |