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Holy Night

| sexta-feira, 29 de maio de 2009 | 4 comentários |
Tinham ambos decidido que não iriam votar nas próximas eleições, e, como budistas que eram, juraram-no ajoelhados em frente dum pedaço de incenso a arder. Uma garrafa de vodka depois, andavam os dois a voar muito baixinho pela Cidade a destruir toda a propaganda política que encontravam nas paredes, nos outdoors, nos postes e em todo o lado. «Estou Uno com o Universo», dizia um enquanto grafitava o símbolo do Om na parede de um prédio, o outro, que estava a mijar contra a mesma parede respondia«e eu estou contigo». Eram mais ou menos duas horas e dez minis da manhã quando eles, que já tinham atingido a altitude cruzeiro, descobriram um faixa de propaganda que urgia purificar.«Purificar como?» perguntou um, «Com o fogo» respondeu o outro muito sério. Sucedeu que não foi só a faixa que começou a arder, e em menos de nada apareceram uns agentes da segurança nacional a gritar muito alto «ALTO!» e a correr em direcção aos dois meliantes. Estes, sem mais, separaram-se e encetaram uma maratona até casa. Um, acagaçou-se tanto que se deixou dormir debaixo da cama, o outro foi-se esconder na varanda do prédio e por lá ficou. No dia seguinte o locutor da rádio local comentava indignado: Anarco-Budistas Aterrorizam a Cidade.

A Título Excepcional

| quarta-feira, 27 de maio de 2009 | 9 comentários |
O Parvo da Cidade, um dia, mandou reunir todos os seus patrícios no Salão Nobre da Praça Central e declarou: Caros amigos! Amanhã, a título excepcional, vamos apedrejar todos os banqueiros da Cidade.
O povo aplaudiu em êxtase; aquele era deveras um bom Parvo, podia-se sempre esperar dele boas ideias para animar as massas.
No dia seguinte, o povo, que já havia reunido de antemão todos os banqueiros num buraco, fez uma festa de arremesso. Havia quem mandasse pedras grandes para causar mais dano, outros preferiam pedras pequenas porque eram mais rápidas, as mulheres gostavam de mandar várias pedras de uma vez porque tinham menos pontaria, as crianças riam-se muito e como não conseguiam arremessar, cuspiam em cima dos banqueiros; estes tentavam repetidamente escalar pelas bordas da vala: esforço inglório, havia sempre quem lhes pisasse as mãos e lhes pontapeasse a cabeça de volta para o fundo.
Acabado o festival, e desfeito o nervosismo que se tinha acumulado entre os habitantes, a cidade retornou ao seu marasmo natural.
Passado algum tempo, uns senhores de fato e gravata que tinham ouvido falar da cidade desgovernada, vieram instalar-se entre os habitantes e falar-lhes da maravilha dos Partidos. Eram os políticos diziam eles, e representavam o povo. Falavam muito alto e prometiam aos habitantes, mundos de todas as cores, promessas essas que nunca eram cumpridas, o que deixava os habitantes da Cidade em alto grau de ansiedade e tristeza. Ora, o Parvo da Cidade que não gostava nada de ver os seus companheiros cabisbaixos e de moral em baixo, um belo dia, reuniu os patrícios todos no Salão Nobre e declarou:
Caros Amigos! Amanhã a título excepcional...

O Engodo

| terça-feira, 26 de maio de 2009 | 3 comentários |
O espectáculo era composto de muitas luzes, muito barulho, muitas cores espalhadas pela tenda e muito plástico resplandecente. O Mestre de Cerimónias sabia da devoção dos animais primitivos pelas coisas brilhantes e luzidias e assediava-os com uma voz maviosa «venham comigo meus queridos, venham pelo caminho que vos há-de levar até à luz». Os animais entontecidos, maravilhados com os palhaços e malabaristas que ladeavam o caminho, seguiam os velho Mestre de Cerimónias que saltitava de um lado para o outro e apontava sempre para a luz. À frente iam os ratos, sempre apressados a liderar a estranha caravana, atrás destes vinham as vacas acompanhadas pelos porcos, e, logo a seguir os burros e outros distraídos. O fogo de artifício explodia a compassos sucessivos e os trompetistas de ouro e as bailarinas de cristal compunham o cortejo. Golfinhos azuis tentavam, de tempos a tempos, alertar os animais, avisar-lhes que a luz ao fundo do túnel era na realidade um comboio, mas estes já só prestavam atenção à magnificência do espectáculo que, era realmente espectacular.

O Mestre

| segunda-feira, 25 de maio de 2009 | 4 comentários |
Abrenúncio andava pelas ruas estreitas da cidade, à procura do Mestre. Procurou pelos pequenos túneis que ligam as ruelas umas às outras, passou pelo Golem na parede, desviou-se dos inúmeros transeuntes que, quiçá, também eles procurassem o mesmo, e nada. A sombra do Mestre e os ecos que esta produzia estavam por todo o lado; na pequena praça com o seu nome, no bairro judeu junto à estátua, numa homónima livraria, em todo lado Abrenúncio encontrava o Mestre sem que este estivesse presente. Atravessou a ponte do Carlinhos, acompanhado de perto pelo olhar de censura de todos os santos e chegou ao Bairro Pequeno. Subiu uma estreita escadaria a custo e chegou onde, nem mesmo o agrimensor havia logrado chegar: ao Castelo. Ao deambular pelos jardins do Castelo pisou algo que produziu um som, como que estaladiço. Quando foi raspar o insecto da sola do sapato, constatou num misto de tristeza e ternura que, tinha finalmente encontrado o Mestre.

A Ponte

| sexta-feira, 22 de maio de 2009 | 7 comentários |
Romualdo estava sentado na ponte de embarque nº 17, a que dava acesso aos cargueiros cósmicos. Lá fora, cruzavam nos céus avermelhados de Remulak – A Grande, toda uma diversidade de naves intergalácticas. Tinha sido um mês complicado para a Federação. A crise havia instalado o pânico nas colónias e ninguém havia que, tivesse a capacidade de manter os colonos nos postos para que tinham sido destacados. De repente, um mundo inteiro voltava para casa. Romualdo não. Por seu lado estava feliz por partir. Farto que estava das confusões da Cidade, não via a altura de se mudar para outra parte, de preferência para uma Lua desértica qualquer. Pelos altifalantes quadrifónicos da estação chamaram o seu nome. A sua presença era exigida com urgência no controlo de passaportes. «Quanto mais perto mais longe» pensou, já um pouco angustiado.

A Viagem

| terça-feira, 12 de maio de 2009 | 11 comentários |
Estavam reunidos de emergência, na sua cela habitual: Romualdo, Zeferino, Anacleto, Abrenúncio e o recém-chegado Ildefonso. Tinham chegado aos ouvidos de Zeferino, que era o mais antigo do grupo, rumores de que El Matador iria sair em viagem. Estavam todos num frenesim de excitação quando Zeferino deu início aos trabalhos:
-Companheiros de Infortúnio, chegou-me a informação de que o nosso algoz vai de viagem! Pedi esta reunião de emergência porque, escusado será dizer que é uma oportunidade excelente para finalmente nos vermos livres deste lugar.
-Vai para onde? Quanto tempo?-Inquiriu Romualdo que começava já a delínear mentalmente um plano de fuga.
-As minhas fontes dizem-me que vai uma semana para Praga.-Respondeu Zeferino embuído da maior seriedade.
-É realmente uma oportunidade de ouro, não a devemos desperdiçar- Romualdo, esfregava as mãos e sorria maquiavelicamente.
Chegou a vez de Anacleto falar. Anacelto, o ponderado, olhou para os presentes um a um e depois soltou a bomba:
-Mas vocês esquecem-se que, se ele vai viajar, nós involuntáriamente acabamos por ir com ele.
Zeferino encostou-se à parede, lívido, e deixou-se escorregar para o chão. A realidade deixou-lhe as pernas bambas. Romualdo por seu lado desatou a dar cabeçadas na parede «foda-se, foda-se, foda-se», era-lhe difícil conceber como é que de um momento para o outro a esperança tornou-se desespero.
Abrenúncio abstinha-se sempre nestas reuniões. Manteve-se calado.
Ildefonso, a quem ninguém pediu a palavra afirmou simplesmente:
- Eu cá não me importo de ir, desde que nesse sítio os gelados sejam bons.

Clemência

| segunda-feira, 11 de maio de 2009 | 2 comentários |
Havia já algum tempo que o homem estava deitado no chão a pedir clemência. Em volta dele, os agentes da autoridade cósmico-metafórica não se cansavam de lhe explicar, com o cardado das botas, a verdadeira e respeitosa forma de pedir por clemência. Nisto chegou o santíssimo padre a voar baixinho num preservativo insuflável:
- Parem imediatamente em meu nome – Gritou irritado o santo padre – Não vêem que estão a fazer tudo mal?- E logo se prontificou a mostrar como se fazia. Pediu emprestado um bastão a um dos agentes, e, com uma fúria divina desferiu violentos golpes na cabeça do energúmeno até que o sangue jorrasse vermelho pela calçada. O energúmeno contudo, continuava sem saber qual a maneira decente de pedir clemência. Entretanto, surge o sr. Engenheiro no seu fato de jogging. Ora, ao senhor engenheiro(que suava em bica) não lhe agradou nada ver o santo padre naqueles preparos interagindo tão agressivamente com um dos seus contribuintes, e, alegando a separação de poderes entre Igreja e o Estado, conseguiu afastar o outro para um canto.
- Prestem bem atenção! Eu vou-lhes mostrar como isto se faz – discursou o engenheiro para a multidão que entretanto se juntara, e nisto, a um estalo de dedos seu, sai do aglomerado a trupe de ministros da república, munidos de paus e pedras, pregos ferrugentos, fisgas e bombinhas de carnaval, e num descontrolado acesso de raiva caem em cima do homem com todas as suas manhas eleitorais.
O homem acabou por ficar feito em pedaços no meio de tanta confusão, mas quase no fim, a multidão já sabia gritar em coro:«Clemência! Clemência!». E assim é que era bonito.

O Absurdo

| sexta-feira, 8 de maio de 2009 | 5 comentários |
O meu vizinho era um homem prático. Como homem resoluto e racional, era tão ateu que os rosários se partiam à sua passagem. Uma vez entrou forçado numa igreja e as beatas apagaram-se de imediato. Não acreditava em crendices e desdenhava todas as superstições. Um dia porém, ao sair de uma cervejaria, num estado muito pouco católico, sentiu uma presença estranha num recanto escuro da rua. Na condição ziguezagueante em que estava, decidiu apanhar um táxi e começou a descer a velha rua em direcção à doca. Quanto mais depressa andava mais sentia aquela incerteza estranha perto de si. Era algo escuro e incómodo e violentamente sarcástico. A uma certa altura, já movido pelo pânico, desatou a correr, e, quase a chegar à praça de táxis, dobrou uma esquina onde foi decapitado pelo Absurdo que o perseguia. Não houve testemunhas. Quem encontrou o corpo, descreve a cara do meu vizinho (separada do corpo)como que presa num esgar de horror. O horror de se ter confrontado com o Absurdo foi demais para ele; o corpo não aguentou o choque e rejeitou completamente a cabeça.

Follow Me

| quinta-feira, 7 de maio de 2009 | 2 comentários |
Ildefonso encostava-se sempre na mesma esquina, onde acendia um cigarro e esperava calmamente pela sua vítima. Era a rua mais movimentada da cidade, por isso nunca esperava muito tempo até que passasse alguém que fizesse o seu género, ou seja, qualquer pessoa. A escolha era completamente aleatória, geralmente esperava até o cigarro chegar ao fim e escolhia a primeira pessoa que se lhe cruzasse. Depois era dar asas à velha obsessão, que era a de perseguir as pessoas pelas ruas, enquanto estas faziam a sua vida normal. Como nunca teve amigos, nem em criança, nunca experimentou o verdadeiro fenómeno da socialização; as suas alegrias e desventuras. Por isso gostava de seguir as pessoas, de vê-las a sorrir, a conversar na esplanada do café, a discutir acaloradamente, a fazer compras, a namorar, a chorar...Era um vampiro emocional. Gostava muito de estádios de futebol, não por causa do jogo em si, mas pelas emoções selváticas que aí podia sugar. No trabalho era o Chefe, e ninguém gostava dele, e essa era umas das sensações a que estava mais habituado: o ódio. Aos sábados, quando as famílias iam para a praia, ou passear para o jardim com as crianças; Ildefonso gostava de assistir a funerais, o cemitério era outro dos seus locais favoritos. Eram poucas as pessoas que davam pela presença daquele homenzinho, que nada dizia, que não incomodava e que praticamente não existia. Ildefonso era um solitário de raça lobo.

Decisão Matinal

| quarta-feira, 6 de maio de 2009 | 10 comentários |
Um dia, Abrenúncio acordou decidido: «Hoje vou cortar os pulsos!». Foi uma daquelas decisões que um indivíduo, de vez em quando, toma logo pela manhã e que depois só se arrepende quando já não há nada a fazer. «Mas primeiro, vou fazer a barba!». Lá está, outra decisão firme tomada logo antes do pequeno almoço. Era comum no bairro de Abrenúncio, as pessoas acabarem com a própria vida das mais variadas maneiras, mas quase ninguém abordava a questão pelo seu lado mais visual. Ainda um ano antes, houve um vizinho de Abrenúncio que se “amandou”do quarto andar e ao estatelar-se no passeio, ficou parcialmente desfigurado. Toda a vizinhança foi unânime na avaliação:«Que cadáver tão foleiro». Abrenúncio, que era um esteta, estava decidido a ter um cadáver bonito (dentro da medida do possível), por isso lá fez a barba.
Estava ele quase a concretizar o acto de auto-flagelação, quando entra despavorida pela casa de banho adentro, ela:«Não faças isso meu grande camelo». Grande camelo era a forma carinhosa como ela sempre o tratara. Com aquele simples gesto, ela, convenceu Abrenúncio a viver. Era dela que ele sempre tinha gostado. Entre a tentativa de suícidio e o salvamento uma coisa levou à outra e começaram a namorar. A coisa até correu bem durante três semanas, mas depois Abrenúncio descobriu que ela o tinha trocado pelo seu melhor amigo que, se tentara enforcar na varanda do prédio. Foi então que Abrenúncio, desgostado, tomou outra decisão matinal: nunca mais cortar a barba.

A Muralha

| terça-feira, 5 de maio de 2009 | 7 comentários |
O monte de papeis em cima da secretária tornou-se efectivamente num castelo quando lhe foi acrescentado mais duas pastas e um dossier com aborrecidas datas, infindáveis inquéritos e facturas absurdas. Zeferino já tinha apostado com o seu colega das entregas em como, um dia, aproveitaria a muralha dos processos para se escapulir do trabalho sem que ninguém desse por nada. E assim, abriu o alçapão que ficava por debaixo da sua secretária e desceu pelas escadas de corda que havia preparado de antemão. No túnel que dava acesso à saída do complexo encontrou uma senhora idosa perdida «não minha senhora, para receber a pensão não é por aqui...». Algumas horas após consultar várias vezes o mapa, logrou sair do cinzento labirinto. O céu parecia-lhe mais azul que o normal e o ar cheirava-lhe a praia.
Na sua secretária o telefone tocava sem resposta. Do outro lado da muralha de papel, os seus colegas comentavam: «Lá está o Zeferino!...Que dedicado!...Quanta concentração...,nem atende o telefone». Na praia, Zeferino construia castelos de areia e deixava-se enrolar propositadamente nas ondas, ainda era cedo.

O Banho Frio

| segunda-feira, 4 de maio de 2009 | 8 comentários |
Deitou-se à fresca da tarde quando uma suave brisa lhe entrava pela janela do quarto. O banho frio lavara-lhe a cabeça por dentro e por fora, o sebo e os pensamentos ensebados. Há muito que não sentia aquela calma redentora, aquela paz consigo próprio, aquela inocência longínqua. Sacrificara grande parte da vida a um conjunto de ideias, de situações e de pessoas que não tinham nada a ver com a pessoa que ele realmente era. Uns dias antes olhara-se ao espelho e não se reconhecera: Quem era aquela pessoa gasta, cruel, enfurecida que espumava pela boca? Para onde tinham ido o sorriso cândido e a bondade de menino? A resina daquela vida estava-lhe entranhada na pele, no sangue, na ressaca de todos os dias.
Depois do demorado banho requalificador, ligou o Miles na vitrola, deitou-se nú pela brisa da tarde e foi adormecendo devagarinho...