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A Entrevista

| terça-feira, 26 de janeiro de 2010 | 4 comentários |
A sala de espera estava apinhada. As pessoas estavam fartas; bocejavam, discutiam o tempo, olhavam para o tecto, penduravam-se nos candeeiros, amontoavam-se e esperavam. A busca por trabalho tem destas coisas; esperar numa sala fria, longas horas sem fazer nada, na esperança de arranjar algo para fazer.
Os lugares disponíveis eram dois, apenas dois: um p'ró menino, outro p'rà menina. Os candidatos eram trezentos: novos, velhos, com doutor sem doutor, com experiência sem experiência, de todas as cores e feitios de gravata. Encetavam conversas amistosas entre si, sabendo porém que naquela situação eram adversários. E se por um lado sorriam, esse sorriso encerrava em si a vontade que existe em todos nós de, em caso de conflito, aniquilar o próximo; especialmente quando o próximo está mesmo perto, como era o caso. De vez em quando um nome era chamado lá do fundo, como que vindo das profundezas, como se da chamada para o juízo final se tratasse. Se alguns logo arrebitavam e caminhavam ávidos para a entrevista, outros havia a quem a vontade já havia sido quebrada, ao ponto de se arrastarem para a sala de conferências com a esperança toda gasta e maltratada.
A Entidade Suprema era quem dirigia o inquérito. Escarafunchava o indivíduo de alto abaixo com a minúcia de um inquisidor. Desnudava-o de defesas, farejava-lhe as fraquezas que não tardava a encontrar; Apontava a provecta idade de alguns assim como a pueril geração de outros. Mastigava e cuspia porta fora os candidatos depois de lhes saborear o inefável molho que era o medo e a necessidade.
No fim o cansaço abatia todos e a sensação de inutilidade pesava nos pés de regresso a casa.
Os lugares, esses, eram atribuídos por artes de mágica. Alguém telefonava e, num passe rápido de prestidigitação o cargo era ocupado. Seres místicos e alados como O Sobrinho de ou O Filho de, brilhavam sempre no meio do espectáculo mesmo sem terem comparecido. Os outros, só eram chamados para encher o estádio.

O Joelho

| quinta-feira, 21 de janeiro de 2010 | 6 comentários |
Uma dor no joelho, era do que se tratava. Abrenúncio saiu de casa e o joelho começou imediatamente a doer-lhe. Não era bem uma dor, antes uma pressão que se fazia sentir num músculo junto à rótula que lhe causava desconforto e o impedimento de andar normalmente. Quando ia para o trabalho, com o seu andar desengonçado, as pessoas com pena dele deixavam cair comentários como «coitadinho, é tão novo» e «é uma vergonha, o Estado não faz nada por estas pessoas». Nas fila das finanças, quando teve que ir prestar declarações, sentiram uma tristeza peculiar com a sua figura de gazela atropelada e deixaram-lhe passar à frente na fila. A sua imagem provocava nas pessoas um misto de sensações entre a piedade e a repugnância; se havia aqueles que se enterneciam à sua passagem, outros repeliam o olhar evitando assim o espectáculo grotesco que era Abrenúncio a tentar andar direito. Ninguém gosta de ver a degradação a que o corpo humano pode chegar, lembra-nos sempre a nossa própria mortalidade, a nossa falência física, o imprevisto e o inevitável ao virar da esquina.
O dia estava nublado e quando Abrenúncio esticou a mão para ver se estava a pingar alguém lhe colocou uma moeda na palma aberta; ficou como que incrédulo a fitar o homem que se afastava não sem antes lhe lançar uma expressão que dizia «não precisa de me agradecer.»
Ao final da tarde, novamente em casa, Abrenúncio esparramou-se no sofá e colocou a perna ao alto; o telefone tocou:
- Estou?...Atão pá...Não, hoje não vou...Lesionei-me ontem a jogar futebol, tenho joelho numa lástima...Pois...Além disso as pessoas hoje andam a olhar-me de um maneira esquisita.

O Puzzle

| sábado, 16 de janeiro de 2010 | 2 comentários |
A polícia fez-lhe uma pergunta simples, à qual ele respondeu «são os meus amigos, estão a descansar...» e prosseguiu a beberricar o seu armagnac denotando um ar incomodado a quem haviam estragado o dia. Toda aquela azáfama deixava-o um pouco irritadiço, ele gostava do silêncio e das horas calmas, e aquela já se havia transformado numa hora transtornada. Ajustou o robe e acendeu mais uma cigarrilha. Um homem tem que manter a postura em todos os momentos, mostrar que não é um animal selvagem mas sim um ser civilizado e racional. Os agentes da autoridade pelo contrário, estavam à beira do desespero, os cadáveres não paravam de surgir, quanto mais fundo cavavam mais camadas de ossadas iam encontrando. Dir-se-ia que tinham tropeçado num puzzle gigantesco, não fosse a tragédia de as peças serem humanas. O chefe de polícia, sentado na poltrona em frente do suspeito confesso, não conseguia discernir o verdadeiro estado de alma do perpetrador e isso incomodava-o; o absurdo e o imprevisível não eram seus amigos, evitava-os sempre que podia. Quem será este homem? Um monstro? Um doente mental? Um génio do mal? O chefe de polícia era um ávido consumidor de romances policiais e aquelas eram as categorias de criminoso que ele mais apreciava.
-Diz que são seus amigos, porque os matou?
-Sempre as mesmas perguntas, que aborrecimento, não quer beber nada? Limitei-me a fazer-lhes um favor: acabei com a sua miséria, a sua escassez de imaginação, dei-lhes descanso, estão a descansar já lhe disse.
-Quantas pessoas mais encontraremos ali? - Continuava o chefe de policia; gotas de suor frio formavam-se-lhe na testa.
-Quantas? Meu Deus, quem é que vai saber, acha que isso importa? o senhor é policia ou contabilista? Eu aborreço-me muito senhor agente, inspector ou lá o que senhor é; aquelas pessoas aliviaram-me o aborrecimento, ainda que por pouco tempo, foram uns heróis do meu ponto de vista, e agora aparecem os senhores e aborrecem-me mais...Sinto-me cansado.
«É verdade» pensava o chefe de polícia para si, nos dias que correm, aborrecemo-nos cada vez mais; os livros já não se usam e na televisão não passa nada de jeito, será a isto que vamos chegar quando estivermos fartos de todas as formas de entretenimento embrutecido que inventámos. Será este homem um criminoso ou um homem comum, o primeiro de uma geração vindoura? «Cabrões de vindouros» desabafou o chefe de polícia em voz alta. O homem refastelado na poltrona, acordado do seu torpor, abriu muito os olhos como se tivesse finalmente na presença de alguém que o compreendia:
- É mesmo assim senhor Comissário, vá lá, alegre-se, beba um copo comigo.

A Nódoa

| quarta-feira, 13 de janeiro de 2010 | 5 comentários |
Hermenegildo vivia em permanente estado de impermanência; num estado intermédio por assim dizer. Não era isto nem aquilo; nem pão nem bolo, e por isso, via-se à deriva na ilusória passagem do tempo. Parado à porta giratória da existência, não sabia se estava a entrar ou a sair. Sentia-se como que uma partícula excitada com ataques de epilepsia quântica.
Hermenegildo – O Simples, não tinha geração: era um forasteiro de si próprio. Ou nascia demasiado cedo para as revoluções ou quando acordava já era velho demais para nelas participar.
Não tinha pátria.Tivesse ele os seus livros e a sua música por perto e faria a pátria em qualquer sítio.
Hermenegildo era pois, e tão somente, uma alma penada, um andarilho, uma nódoa negra na perna da civilização moderna.

O Favor

| sexta-feira, 8 de janeiro de 2010 | 6 comentários |


Ela estava sentada na secretária em frente da sua. Bela como sempre, a viúvez não lhe fizera grande mossa. Parecia até mais enxuta. Quem olhasse com atenção diria que lhe tinham tirado um peso de cima; falava-se no escritório que o marido lhe batia, e que tinha amantes e mais um rol de outras indiscrições. Labregoísio queria acreditar nessa visão detractora do defunto, era a que melhor se encaixava na sua fantasia. Comparado com um marido brutamontes, Labregoísio assemelhava-se a uma pérola num monte de esterco. Mesmo assim não se sentia à vontade para dar o passo seguinte, ainda tinha bem presente a recusa que ela lhe dera quando era apenas solteira. Tivesse ele a desenvoltura dum Humphrey Bogart, a voz cava dum Robert Mitchum, e, de cigarro ao canto da boca, soltaria um «então linda, como é que vai isso?» e seria o suficiente para a arrebatar. Mas, da última vez que tentara fumar um cigarro, apenas para impressioná-la, foi acometido de um ataque de tosse tal, que passou o resto da tarde agarrado à bomba para a asma. Foi uma entre as muitas humilhações que viriam ao longo dos anos. No casamento dela por exemplo; passou toda a cerimónia a chorar, e no copo-de-água, embriagou-se ao ponto de ir disputar o ramo de flores com as restantes celibatárias.
A esperança, como já se sabe, é a última a morrer, e Labregoísio era um sujeito perseverante. E agora ali estava ela, livre outra vez, à espera que Labregoísio fosse o seu príncipe encantado, o bombeiro que apagaria o fogo da sua solidão. Labregoísio sonhava acordado com um sorriso estúpido estampado na cara, quando o insólito sucedeu. Ela piscara-lhe o olho discretamente. O coração acelerou-lhe contra as costelas. Teria visto bem? Estaria a alucinar? Não, era verdade, lá estava outra vez, e depois mais uma vez. «Deuses obrigado!» rejubilou; finalmente tinha chegado a sua hora, e por iniciativa dela nem mais. Era muita sorte ao mesmo tempo «Mas eu mereço, foram muitos anos à espera» reflectia Labregoísio orgulhoso: quem espera sempre alcança. E nisto ela levanta-se da sua secretária e dirige-se a Labregoísio que fazia figas atrás das costas «É agora, é agora». Aproxima a sua cara da de Labregoíso, leva a mão à pálpebra e suspira «Labregoísio, faça-me um favor, sopre-me  a vista, é que parece que entrou um cisco para o olho». «Obrigada».Tornou a sentar-se calmamente atrás da secretária sem lhe dar mais conversa. Labregoísio no entanto estava em êxtase, não cabia em si de contente e dava saltinhos irritantes na cadeira «Ah! É óbvio que ela me deseja, hoje mesmo vou convidá-la para jantar».
... Que sempre que o homem sonha, o mundo pula e avança...

Beleza Efémera

| terça-feira, 5 de janeiro de 2010 | 21 comentários |
Romualdo vagueava pela noite clara de Remulak – A Grande, e tudo lhe parecia belo. A lua cheia despejava na calçada as suas lágrimas de prata, e, majestosa alumiava o caminho aos filhos da noite. Poetas, vagabundos, apaixonados, desesperados, artistas..., era toda uma fauna que emergia na cidade quando a lua se revelava em todo o seu esplendor. Romualdo conhecia-os quase na totalidade e achava-os belos a todos. Nutria um fraco por estas personagens ultra-românticas, pelo absurdo da sua demanda, pelo abandono a que se votavam. Também ele era um apaixonado em extremo, e nessa noite, cantava abraçado aos candeeiros “the piano has been drinkin'...not me!”. Mais duas passadas para o lado, a força centrífuga, a gravidade e, ia abraçar-se a um marco de correio: «satellite of loooove...pom, pom, pom, satelliiiiite...» A música mudava com a mudança de passeio. «A lua, meu deus...A lua É LINDA...satelliiiiiite offff loooovve». Com o chão a desfilar sob os pés como um tapete rolante e a rua a sacudir intermitente, Romualdo estacou diante de uma moradia térrea que naquela noite se assemelhava a um castelo, o mais lindo e doce do mundo, encostou a cara à muralha e plantou-lhe um beijo enternecedor. Como não encontrou as chaves do castelo tocou à campaínha. Foi uma cara de desapontamento e de enfado que abriu a porta; Romualdo, puxado violentamente para dentro por uma força invisível, zigzagueou por entre móveis e foi aterrar num sofá. «Que lindo estado para se chegar a casa! É sempre a mesma coisa em noites de lua de cheia» repreendeu a dona de casa sem grande convicção, a cena já não era original.«Tu é que és linda mulher!!!» balbuciou Romualdo com um fio de baba a escorrer-lhe pela cara «És tu... És tu e a lua... belas as duas... Tu a lua e os lobisomensssszzzzzzzz» E neste embrulhamento, nesta baralhação de conceitos, adormeceu como só as crianças e os bêbados conseguem, os mesmos a quem Deus sempre protege.

Beauty is in the eye of the beerholder.

para a "Fábrica de Letras" - Beleza

A Última Hora

| segunda-feira, 4 de janeiro de 2010 | 0 comentários |
O tempo das indecisões acabara. Chegou a uma encruzilhada mas desta vez sabia bem que caminho percorrer, não havia direita nem esquerda, só em frente. O horizonte perfilava-se mais perto, no entanto a viagem tornara-se mais bela por estar a chegar ao fim. Já não havia tempo para minúcias, nem peritagens da verdade, nem sequer lhe interessavam. A sua verdade, a verdade que contava, era a de o sofrimento ser uma ilusão e o medo um companheiro fiel que se esvai como o fumo de um cigarro. «Apercebemo-nos disto demasiado tarde». «O absurdo, o fruto das nossas ânsias, a raiz do mal-estar, desfaz-se perante a presença do criador. Assim, apresentamo-nos nús, despidos de estupidez e arrogância e confrontamo-nos com o Ele que somos Nós. Apercebemo-nos disto demasiado tarde».
Havia tanto para fazer mas o tempo emaranhava-se na sua cabeça, enleava-lhe os pensamentos, baralhava a lucidez, a fantasia e o desejo: «Ainda tenho tempo? Quanto falta? O quê?...Não percebo.»
Sorriu uma última vez em frente ao espelho e viu-se em criança a sorrir de volta. Abriu a porta do guarda-fato e escolheu a melhor cruzeta; «Está na hora de pendurar o esqueleto.»