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| quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012 | 7 comentários |
Quando acordou de manhãzinha, Abrenuncio soube de imediato que o dia lhe ia correr mal.  Os ossos latejavam por todos os lados, as articulações rangiam e sentia um frio ligeirinho correr dentro de si.
«Tu queres ver que eu estou doente?» Virou-se para um lado e depois para o outro como que a tomar coragem para sair da cama. Mas havia uma força maior que o empurrava para o fundo dos lençois, uma vontade maligna que o incitava a ficar na cama, enredava-se nas suas malhas cada vez que se movia e, cada vez  se atascava mais; como quem se afunda em areias movediças. Quanto mais pensava em sair da cama mais lhe pesavam os olhos e a cabeça. «Que força é esta que trago nos braços que me aconchega os travesseiros e desliga o rádio?». Abateu-se de cansaço e ressonou um bocadinho para se recompor.
Levantou-se num salto, carregado de uma nova energia cheia de boa disposição. Fez o café e tomou o pequeno almoço com apetite. Agora sim o dia começava bem. Enquanto lavava os dentes lembrou-se de uma Ária d’ A Flauta Mágica e pôs-se a cantar: Der Hölle Rache kocht in meinem Herzenao que o bidé e a banheira replicaram: Tod  und  Verzweiflung  flammet um mich her!
Que alegria estar vivo!
Estava nestes preceitos quando o seu bissexto sentido deu o alarme, «pera lá…, mas eu não sei falar alemão, e o bidé parece-me um pouco desafinado», e como quem cai duma nuvem Abrenúncio acordou outra vez, mais enredado ainda nos lençóis e mantas que o aprisionavam.
A hora de se levantar já zarpara há muito e a manhã de trabalho dada como perdida em delírios de bidé e Mozart. Abrenúncio, vencido, chorou muito; havia sido traído pelo  cérebro, o seu melhor amigo. Certo era que não faria mais nada o resto do dia – o seu corpo não lho permitiria. Estava prisioneiro de si mesmo.
Aos poucos o choro intempestivo foi dando lugar a uma relaxante acalmia, e Abrenúncio, abatido de cansaço, ressonou mais um bocadinho, para se recompor. 

A Automotora

| terça-feira, 7 de fevereiro de 2012 | 17 comentários |
Em dias soalheiros de calor primaveril, Romualdo sente-se em baixo. Não lhe agradam as pessoas na rua que passeiam em manga curta como se não fosse Inverno. É um insulto à Natureza, pensa ele. O Inverno é uma estação de tragédia e calamidade; vai bem com trovoadas ribombantes e enxurradas devastadoras. Deve ser cinzento e frio, e escuro. Que vem a ser isto de passear no jardim e preguiçar nos bancos à beira ria.  Até os pescadores se desfazem em rasgados sorrisos para as objectivas dos turistas. E os turistas que fazem eles aqui? Vão-se embora, invectiva mentalmente Romualdo. Não há poesia nenhuma nas ruas cheias e luminosas deste Inverno. As vielas têm que estar desertas, como as folhas caídas que se movem num bailado fantasmagórico, embaladas pela ventania que ecoa nas paredes dos prédios. Que é isto de fazer piqueniques ao domingo como se não houvesse frio? Gostavam que nevasse na praia em pleno Agosto? Como é que uma pessoa pode trabalhar nestas condições?
Romualdo sente-se como um urso bipolar; e nisto chega à estação dos comboios: a única estação que o compreende. Junto à linha, um maquinista olha embevecido a sua automotora que reflecte dourada o sólinho da manhã.