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Os Dias

| terça-feira, 12 de julho de 2011 | 9 comentários |
Os dias passam e a caravana passa. Não, não é bem assim. Os cães ladram e os dias passam. Não! Também não me parece que seja assim o adágio!?
Havia já alguns dias que Labregoísio se debatia com o dito popular, como se dum enigma se tratasse; um quebra-cabeças, uma adivinha. O que ele sabia era que os dias pareciam passar mesmo, indiferentes a qualquer polémica pareciam sair ilesos das disputas entre cães e caravanas.
Os dias passam, em catadupa, uns a seguir aos outros, sem travão, sem vergonha, a despeito de rugas e cabelos brancos que com eles se arrastam. E as artroses e artrites e reumáticos e flebites, de quem é a culpa? Do tempo, depurado em dias, que passa mesmo, parece já não haver dúvidas. Ora bolas! Suspirou Labregoísio. Haverá alguma forma de impedir a passagem arrebatadora dos dias, a sua fúria, a sua erosão? Um dia lembrou-se e saiu à rua, logo de manhãzinha para que os dias percebessem a mensagem, e plantou-se em frente de casa, de cartaz na mão, com uma mensagem clara para os dias: Não Passarão! Mas passaram na mesma, os cabrões. Passam sempre. Quem? Os dias ou os cabrões? Os dois.
O que fazer? Labregoísio pesquisa uma forma de enganar os dias; um meio de atenuar a sua passagem pelo menos. É que a esta velocidade acabamos por não ter tempo para nada, nem sequer para apreciar os dias – Explicava Labregoísio aos vizinhos quando estes o encontravam na rua de pijama e cartaz na mão logo pela madrugada.
Um indivíduo um dia acorda e zás!!! Já passaram uma mão cheia de dias, sem que ninguém avissasse. Um dia andamos a correr à sua frente, na maior das despreocupações, e no dia a seguinte já voamos esbaforidos atrás deles,como se não houvesse amanhã. 'Como se não houvesse amanhã' - quem é que inventou esta? Há sempre amanhã! Quando não há para uns há para outros, já se concluiu: eles passam dê lá por onde der.
Em Marte os dias são mais longos; talvez devêssemos viajar para lá. Não os podemos contrariar mas podemos percepcioná-los mais devagar. Imaginem: Uma pessoa de 40 anos, se tivesse nascido em Marte teria agora sensivelmente 20. Um jovem portanto. E em Júpiter, mais além, o indíviduo cheio de experiência e sabedoria teria apenas 3 aninhos, e em Saturno, no meio de tanto anel, apenas 1.
A resposta parece portanto residir na viagem. No movimento para a frente e para longe. Pegar na relatividade e domesticá-la. Eles passam, já sabemos, o importante é o que fazer com eles.
Labregoísio estalou os dedos como quem grita eureka. Tinha solucionado o puzzle. O ditado afinal era simplicíssimo: Os dias ladram e a caravana passa.

Móce, ò Moody's: Vai Cagar!

| quarta-feira, 6 de julho de 2011 | 10 comentários |
Só lhe apetecia mandá-la à merda: à agência de rating, à colega de trabalho já só pensava em matá-la. Era automático, sempre que ela abria a boca e desatava numa daquelas verborreias que sugavam o ar todo da sala, era inevitável que as ideias homicidas surgissem. Durante muito tempo eram ideias suicidas as que primeiro lhe chegavam às franjas do cérebro sempre que ela se punha com aquela litania «ai eu trabalho muito, ai eu tou muito cansada, ai o meu marido isto, ai o meu cão aquilo, ai eu é que sou a coordenadora...», viu-se muitas vezes a regar-se com gasolina e imolar-se pelo fogo, como aquele monge no Vietname ou o puto na República Checa. Mas depois punha-se a pensar e chegava à conclusão que ela provavelmente nem daria pelo o sacrifício e continuaria a falar ad aeternum.
Na rádio, a TSF transmitia em loop que o Pedro Palhaço Coelho tinha apanhado um soco estômago. Bem feita, pensou Romualdo. O rapaz sentiu-se traído pelos liberais selvagens que tanto admira: que desilusão! Já estou a vê-lo a chegar a casa, olhos marejados de lágrimas, a mulher envolta em trapos, os filhos muito magrinhitos, a lareira quase apagada, e o pobre coitado, vergado a uma crise que muito mais que o quebrar, deixou-o de rastos, exausto, famélico, a ter que dar a má notícia:
- Crianças, mulher, o pai apanhou um soco no estômago; este ano não vai haver outra vez prendas de natal.
E a outra não se calava, com aquela loiritude platinada, maquilhada de Rute Marlene num dia não, a falar, a falar: blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, bláblá, blá, blá,,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, blá,blá, blá, bláblá, blá, blá,,blá, blá, bláblá, blá, blá. Era nestes momentos que chegavam a Romualdo os primeiros instintos assassinos. Primeiro tentava evitá-los, atirá-los para a parte detrás do cérebro; refugiava-se na rádio para se distrair mas esta não calava com o soco no estômago do outro e da agência de filhos da puta que nos andam a tentar foder, e então não conseguia fintar mais a natureza e entregava-se ao desejo reptilário, como se dum casaco quente numa noite de inverno se tratasse. Imaginava-se a atirar com o rádio contra a parede, só para lhe chamar a atenção, chegar-se ao pé dela e arrancar-lhe os olhos com um x-acto, mijar-lhe para o cérebro e no fim dar-lhe um soco no estômago como aquele que a agência deu ao Coelho. Era um pensamento doce que o embalava naqueles momentos difíceis, e por minutos conseguia esquecer-se de tudo: da crise, do FMI, da Moody's, e da colega irritante. Mais droga nenhuma consegue acalmar um indivíduo com a mesma intensidade que o poder da imaginação.
Mas como qualquer droga, em que a pedrada acaba por desvanecer e extinguir-se, também Romualdo acabava por descer à terra e ter que enfrentar as suas crises: a da rádio e a outra. Nessas alturas rangia os dentes e martelava as teclas do computador com muita força, como se quisesse fugir pela internet adentro.

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