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O Corte

| quinta-feira, 30 de julho de 2009 | 2 comentários |

Como não lidava bem com a rejeição, rejeitava antes de ser rejeitada. Para Zelmira o mundo era um sítio hostil, governado por deuses de dentição ofuscante e porte espadaúdo. Atravessava as ruas com a timidez própria de quem não se sente entre iguais. Sentia que a sua aparição em público era algo pouco tolerado pelos outros, os perfeitos. Por todo lado deparava com a felicidade de mãos dadas com a boa semelhança. A sua dor era não tanto a rejeição a que os outros a votavam, mas mais a exclusão a que ela própria se obrigava.
Quando chegava a casa, ao fim do dia, revia mentalmente as suas frustrações e por cada uma delas, abria um corte no corpo. Pernas e braços expunham-se cicatrizados como um mapa rodoviário do sofrimento. De solidão falavam os cortes mais profundos, invisíveis ao olhar; os sofridos no interior de si, no âmago do seu ser. Os pistoleiros costumavam talhar o cabo do revólver, por cada morte obtida em duelo, os pilotos da primeira grande guerra faziam o mesmo. Ao pôr-do-sol, no final dos duelos e poisadas as máquinas voadoras, os guerreiros repousavam junto das suas amantes e amadas e faziam amor. Ao mesmo tempo, noutra época do futuro, ou talvez do passado, Zelmira bebia chá e fazia amor com quem lhe dava mais atenção: o canivete.

É Agora

| quarta-feira, 29 de julho de 2009 | 4 comentários |

No meio de tanto desespero, encheu-se de coragem e resolveu matar-se. Assim mesmo, sem mais nem ontem. Pagou o café e saiu do café para ser ainda mais redundante. Seguiu pelo emaranhado de lojas num passo decidido. As suas passadas marcavam um compasso pesado, militar, um tudo nada wagneriano. «Mas isto lá é vida para alguém?» cogitava em voz alta através da torrente de pessoas que se afadigavam no consumismo domingueiro. «Olha, mais um!» reparou um jovem que saía dum MacColestrol. «Só querem dinheiro, só dinheiro, mas onde é que isto vai parar?» perguntava-se o homem enquanto agitava o punho com fúria em direcção aos cartazes publicitários. «Queres dinheiro? Pede ao Cotta!» anunciava um outdoor gigantesco junto à rotunda onde dois jovens muito cool exibiam os cartões de crédito às namoradas.
Andou sem rumo algumas horas, pensando na melhor maneira de por fim à sua vida. Mas a desorientação era tal que não conseguia decidir-se, e, entrava e saía dos estabelecimentos sem tomar conta por onde havia passado. Sentou-se numa cadeira perto da linha dos comboios e finalmente determinou:«É mesmo aqui! 'Tá feito e não mexe». Ouviu o som característico do apita-o-comboio, aproximou-se da linha e pôs-se em posição. Ao fundo, como que vinda do nada, a automotora surgiu em toda a sua fúria mutiladora. «É agora!» murmurou o homem. Quando ia fechar os olhos, preparando-se assim para o embate final e subsequente escuridão, vislumbrou um cartaz do outro lado da linha que anunciava: “Agência Funerária DIAS – Porque Há Dias Assim”.

A Chamada

| terça-feira, 28 de julho de 2009 | 4 comentários |

«Aguarde um momento por favor!...». Zeferino aguardava impaciente que a telefonista completasse a ligação. Telefonava-lhe do passado, onde tinham combinado encontrar-se. Ela estava uns quantos anos atrasada. Zeferino mostrava-se ansioso; tinha passado tanto tempo, havia tanto para falar... E por isso ali estava ele, naquela cabine telefónica ao canto da rua, ainda à espera. «É só mais um momento por favor!..» «concerteza!». Acendia cigarros para passar o tempo, a névoa do tabaco ajudava-o a pensar, a ordenar as ideias. «Aguarde por favor!...». Primeiro ia perguntar-lhe porque não apareceu ao encontro e não o avisou; depois o porquê de nunca mais ter dado notícias, e, mentalmente ia apontando as perguntas que surgiam cada vez que a telefonista o mandava aguardar. As malditas chamadas intemporais eram uma chatice. Relativamente fáceis do futuro para o passado mas um aborrecimento quando o fluxo era o inverso. «É das válvulas» como diria o outro. E assim estava Zeferino, a acender cigarros e a desesperar quando finalmente a chamada passou «Sr. Zeferino, está em linha, pode falar». Encheu os pulmões de ar e de coragem e o que lhe saiu foi: «Então! Ainda 'tás com fome? Queres ir ao italiano ou ao chinês?».

Sublimação

| segunda-feira, 27 de julho de 2009 | 6 comentários |
Tentava mexer-se o menos possível deitado na cama. O calor aquecia-lhe o quarto ao ponto da cozedura. Dava um bom cozido ele. Junto ao osso é onde a carne sabe melhor. A ventoinha há muito que dera o último suspiro. De tanto trabalhar, um dia baixou as pás e foi parando devagarinho. Foi uma morte serena, sem dor. O ar no entanto tornou-se mais pesado, e o suor, mais peganhento. As janelas estavam fechadas por causa do vizinho que era quase surdo e tinha o som da televisão sempre nos píncaros. Não conseguia dormir por causa do barulho mas estava sempre a par dos enredos das novelas. Chorou quando a Zurineide Sueli deixou o Tonhão Raimundo para se casar com o filho do Coronéu.
O pior era acordar sempre encharcado em suor; mas disso já não tinha a certeza se era do calor, dos pesadelos, ou da ressaca. Bebia vodka para acalmar uma tempestade de mágoas e ao mesmo tempo sentia que se afundava nelas; sem bóia, sem braçadeiras, sem salva-vidas. Bêbado, escrevinhava num bloco de papel, planos maquiavélicos para matar o velho. Sóbrio, não conseguia decifrar os gatafunhos da noite anterior.
Os cães uivavam noite fora e no quarto ele dissipava-se lentamente, deixando apenas uma sombra, que se fundia no colchão como lágrimas na chuva.

A Troca

| quinta-feira, 23 de julho de 2009 | 2 comentários |
«E tu, que fazes por estas terras marroquinas?». Perguntou o poeta ao vagabundo. «Olha, trabalho, coisa que pouco me orgulha». Já não se encontravam havia anos. O lírico fechara-se no seu quarto para se curar de uma pequena depressão que foi crescendo e, em menos de nada atingiu a idade adulta. O vagabundo, apagara as luzes do seu país e partira à aventura, calcorreando este mundo e pedaços do outro. Era uma espécie de reencontro de familiares há muito desavindos; não sabiam muito bem o que dizer um ao outro e ambos mediam-se de cima abaixo. «Está mais velho» pensava um. «Continua na mesma» reflectia o outro. Sentaram-se a beber chá e trocaram notas sobre as suas desventuras. O mundo dera as suas voltas. Espantava-se o poeta, que agora transpunha fronteiras, de encontrar o seu amigo agrilhoado às sevícias duma lida rotineira. «O que é que se há-de fazer?». Era verdade, não havia nada a fazer. Ali, naquele deserto saint-exuperiano, tinham trocado de lugar.

A Escadaria

| quarta-feira, 22 de julho de 2009 | 2 comentários |

Anacleto sentiu por segundos uma incomensurável tristeza. Carregava sozinho a enorme máquina às costas e ainda lhe faltava subir muitos lanços de escada. A pesada máquina era desproporcional ao seu corpo franzino e não poucas vezes Anacleto se desequilibrou. Não podia apoiar-se uma vez que tinha as mãos ocupadas. Os braços tremiam-lhe assim como as pernas. Olhou para baixo e chegou a pensar em desistir, mas o caminho de regresso apresentava-se tão distante como o que lhe restava. Estavam à sua espera mas ninguém o ajudava. Gotículas de suor formavam-se na testa e escorriam avulsas rosto abaixo. O suor queimava-lhe os olhos. A imensa solidão queimava-lhe a alma. Não queria estar ali naquele momento e nunca antes sentira tanto a vontade de ser outra pessoa. Subiu mais um degrau e a máquina pressionou-lhe ainda mais a espinha. Encontrava-se praticamente dobrado sobre si próprio. A máquina era possuidora de uma vontade própria. Queria vê-lo quebrado, desfeito. Queria vê-lo a implorar, a desistir. E por isso tornava-se mais pesada a cada passada. Ele compreendia a máquina; compreendia que as suas vontades eram concorrentes. Não obstante serem inimigos, partilhavam um mesmo fado, uma mesma escadaria, uma mesma meta. De certa forma eram cúmplices. E foi ao descobrir a súbita quase-empatia pela máquina que, Anacleto, sentiu apoderar-se de si, uma vastidão de angústia.

A Síndrome de Pilatos

| terça-feira, 21 de julho de 2009 | 2 comentários |
Abrenúncio saiu de casa à pressa. Já estava atrasado para o trabalho. Desceu as escadas a correr e quando já dava à ignição do carro, lembrou-se de todas as pessoas que haviam tocado no corrimão naquele dia. Voltou para a casa em modo rapidíssimo e lavou energicamente as mãos: «mais vale prevenir que remediar». Chegou ao trabalho e seguiu para o seu cubículo de cabeça baixa evitando qualquer contacto com os colegas. O chefe de secção (e seu amigo) que andava há dias atrás dele para saber do andamento de certos relatórios, esticou-lhe a mão em cumprimento: « O que é feito de ti homem?». Abrenúncio, evitando claramente o aperto de mão, penteou o cabelo com os dedos e entregou de seguida os relatórios ao homem. A sua acção não passou despercebida, pelo que o Chefe logo o notificou por ter chegado atrasado. À hora de almoço, quando ia levantar dinheiro no multibanco, pensou nas pessoas que já haviam mexido na máquina e ficou agoniado. O que fazer? Olhou em volta e chamou um miúdo que andava por ali a brincar: «Dou-te dois euros se me fizeres um favor!» O miúdo disse que sim, que lhe levantava o dinheiro, e logo que se viu com o "guito" do outro na mão, desatou a fugir. Abrenúncio, com o estômago a dar horas, de volta ao edifícío onde trabalhava, deu de caras com Rita Lina, a miúda que andava a namorar há algum tempo. Quando esta o tentou beijar, Abrenúncio evitou a “bala” com um jogo de pescoço que envergonharia uma girafa. Recebeu uma chapada de mão aberta como recompensa e pensou: «é por uma boa causa.» De volta ao cubículo deu consigo a pensar no estalo de Rita Lina «será que ela tinha as mãos lavadas?» A tarde passou-a em sufoco, em constantes viagens do cubículo para o lavatório, evitando as mãos esticadas dos colegas pelo caminho «mas esta gente não pensa?»
Deitou-se naquela noite, depois de um banho reforçado, contente consigo próprio:«mais um dia que passou sem problemas de maior».

Ainda Domingo

| domingo, 19 de julho de 2009 | 14 comentários |

Zeferino chegou à praia e estendeu a toalha no sítio que lhe era preferido: o bar. Ficava sobranceiro ao areal e tinha uma vista privilegiada sobre o oceano. Pediu um Mojito. Não que gostasse muito da bebida, mas vira o James Bond a fazer o mesmo num filme. Era domingo; o dia da semana que (de tão estúpido)foi reservado a Deus. Rezou para que uma Halle Berry lhe caísse no colo. Caíu-lhe o Mojito ao invés. Pediu outro, aquela história da hortelã era interessante.
Às 10h30 certas, começaram a chegar as famílias. Perante a imensidão do areal e a difícil escolha entre a esquerda e a direita, iam optando por ficar todas logo ali, em frente à passadeira. Assim dava menos trabalho a sair. À direita ficavam os surfistas, à esquerda as nudistas. As famílias ficavam ao centro para manter a moral e os bons costumes. As mães retiravam a trela aos filhos e deixavam-nos ir para beira-mar, ladrar às ondas. Os pais, alegavam um passeio para esticar as pernas e sub-repticiamente todos os seus membros viravam à esquerda. Os mais velhos arregaçavam as calças cinzentas e iam molhar os pés. Quando voltavam já a melancia rodava por entre sombrinhas. À direita os surfistas comiam croissants e suspiravam por tsunamis que nunca mais chegavam. Mais à esquerda, as nudistas giravam como sardinhas na brasa, e isso enchia de água, a boca dos paizinhos que esticavam as pernas.
Eram 12h00 e Zeferino perdera a conta aos Mojitos. Agora mastigava as folhas de hortelã lembrando um qualquer animal ruminante. Estava calor e Zeferino sentia-se com aquela felicidade que só o rum proporciona. Apetecia-lhe fazer surf montado num croissant, nadar por entre as sombrinhas e tirar as pevides às nudistas. Era ainda domingo, o dia que vem antes de segunda-feira.

O Aterro

| quarta-feira, 15 de julho de 2009 | 4 comentários |
Zeferino olhava para a cidade e entristecia-se. O que antes fora um local aprazível para se viver, brindado com o recorrente espectáculo do por-do-sol, hoje não passava de um mero galinheiro. Um aterro, melhor dizendo. As asneiras feitas em nome do progresso e o milagre da multiplicação dos corruptos, tinham conseguido tornar a cidade numa amálgama cinzenta de pó, cimento e esterco. De onde estava, Zeferino já não conseguia ver a casa onde tinha nascido, nem as ruas onde aprendera a andar de bicicleta. Agora só havia prédios e carros. Prédios onde moravam as pessoas que, tinham carros para se deslocarem até aos prédios. No antigo estádio de futebol, os dois candidatos digladiavam-se, na ânsia de assumir todo o poder e todo o exército de lambecusistas que lhe era inerente. Do pouco que assistiu, Zeferino viu, o candidato da Rua X a mastigar um bocado do nariz do candidato da Avenida Principal. Mas, num volte-face inesperado, o candidato da Avenida conseguira colocar-se numa posição de vantagem e arrastava agora o da Rua X pelas orelhas. O povo delirava ao rubro. Havia sangue, o povo gosta de sangue. As crianças, embrutecidas, comiam carne e rebolavam-se pela relva.
Zeferino recolheu ao quarto, agarrou numa folha de papel e começou a escrever:«Caro Eric, a tua profecia cumpriu-se: chegámos a 2009 e os porcos continuam a triunfar».

O Calor

| terça-feira, 14 de julho de 2009 | 4 comentários |
«Calor do caraças!». Era Labregoísio quem se queixava. Andava para baixo e para cima, no Palácio da Justiça a mover processos e outras caixas cheias de papelada para a cave. A cave era o único sítio onde os magistrados conseguiam trabalhar sem tirar a roupa. Há muito que as salas do primeiro e segundo andar eram um espectáculo para a população. Não porque se julgava o caso de um sanguinário serial killer, não. Quem enchia as salas, ia lá, não para ver a justiça ser feita, mas para poder ver a Assistente do Ministério Público em cuecas. Era algo que no meio do calor abrasador, distraía as pessoas.
Labregoísio gostava da Assistente do Ministério Público, a Eufrázia. Foi por ela que aceitara aquele trabalho a meio do verão. Foi também por causa da Eufrázia que destruíra o sistema de ar condicionado dias antes. Queria vê-la sem roupa. Já uma vez tinha tentado, numa saída à noite. Depois do cinema ele pediu para ela se despir e ela deu-lhe um estalo. Agora que ela finalmente se apresentava nos preparos que ele desejara, andava ele num vaivém intermitente entre a cave e o primeiro andar. «Não é justo!» resmungava Labregoísio no edifício onde todos se pautavam pela justiça. Subia e descia as escadas, com ar maldisposto e a camisa colada ao corpo, de vez em quando suspirava:«Calor do caraças!»

Os Bons Dias

| segunda-feira, 13 de julho de 2009 | 6 comentários |
Romualdo chegou a casa e bebeu duas cervejas de rajada. A sede não era muita, mas a vontade de beber era enorme. Passara o dia perdido nos meandros do Ministério das Boas Maneiras e Etiqueta. Precisava de uma licença para poder evitar cumprimentar os seus colegas todos os dias. Há muito que lhe custava aquele ritual diário de ter que dizer «bons dias» a todo aquele bando de energúmenos, que não lhe suscitavam a menor simpatia. Mais, o que lhe irritava mesmo era o falso humor que abundava na repartição logo pela manhã. As piadinhas à sua cara de maldisposto, as insinuações sobre a noite que passara, tudo pejado de risinhos, sussurros e muita mesquinhice cor-de-rosa.
No Ministério as coisas não tinham corrido pelo melhor. Um dia inteiro de espera. As senhoras dos guichets, imbuídas do espírito da tutela do Ministério, serviam chá e bolinhos a cada utente e perguntavam sempre pela família, antes de começarem a dar andamento aos requerimentos.
A felicidade e boa disposição dos outros irritavam-lhe sobremaneira. «Amanhã já não os vou aturar». Ria-se ao imaginar as caras dos colegas.Estava nisto quando encetou mais uma cerveja que “respirou” de imediato.

Sinais de Fumo

| sexta-feira, 10 de julho de 2009 | 5 comentários |
Havia vários dias que comunicavam por sinais de fumo. As comunicações convencionais tinham ficado fora de uso depois da descarga electromagnética. Como não havia dicionários de linguagem de fumo, e a prática estava ainda pouco difundida, eram frequentes os equívocos e mal entendidos. Especialmente ele, que sempre se baldara às aulas de Morse em Caso de Guerra, agora via-se completamente à rasca para perceber o que ela lhe queria. Passavam horas a tentar decifrar as missivas fumegadas por cada um. Àquela distância as mensagens cruzavam-se constantemente e o caos reinava na informação. A pouco e pouco o fumo dela foi-se desvanecendo no horizonte e acabou por se misturar com a fumaceira geral. Todos os dias ele levantava-se cedinho e acendia uma fogueira, mas do lado dela apenas se afigurava uma nuvem grossa e negra, uma soma do desespero que se fazia sentir pelas bandas setentrionais. Um dia acordou inquieto, ansioso, precisava mesmo de falar com alguém, mas para seu desalento acabara-se a lenha.

O Cansaço

| quarta-feira, 8 de julho de 2009 | 5 comentários |

Abrenúncio arrastava o corpo pelo caminho que lhe parecia cada vez mais longo. Os pés incharam o suficiente para que cada passada sua correspondesse a uma condenação. Os joelhos latejavam, invocando noites de humidade e relento. Maldito reumático. Malditos pulmões que já não respiram. Ainda era cedo. Era metade da sua vida ainda. Chegar a casa, fechar os olhos e dormir. Dez anos se possível...Não, vinte. Vinte anos era o ideal. Sentou-se a meio do caminho a fumar um cigarro e pensou como seria bom se pudéssemos dormir para trás. Adormecer hoje e acordar na semana passada. «Bah! É oficial, estalou-se-me a parvoíce» pensou Abrenúncio em voz alta. Um carro a alta velocidade passou por uma poça de água e deixou-o todo encharcado. Era o que faltava para completar o cenário. Estava a pouca distância de casa mas só conseguia pensar no cansaço. O cansaço que agora se distribuía por todo o corpo.

A Encomenda

| terça-feira, 7 de julho de 2009 | 6 comentários |
Chegou a casa e deu com a caixa em cima da cama. Uma encomenda. Primeiro desconfiou; como é que a caixa foi ali parar? Quem a enviou? Aproximou-se devagarinho e rodeou o objecto de vários ângulos. Era branca e não tinha inscrições. Seria uma daquelas encomendas-bomba que andavam a semear o pânico na Cidade? Não! Não podia ser. Até agora as bombas haviam sido todas detonadas no Sector Intelectual, e ele não passava de um mero operário da Fábrica de Replicantes. E se esta fosse a primeira de muitas bombas a explodir no Sector Operário? Humm, pouco provável. A única facção que lhes guardava rancor pertencia ao Sector Executivo, e esses, conheciam outras formas de lhes induzir sofrimento. Cheirou a caixa, como um sabujo, e não detectou odores químicos. Sentou-se ao lado da encomenda. Mentalmente travava uma batalha consigo próprio «abro, não abro, abro, não abro...». A curiosidade sempre fora um dos seus maiores fracos. Partiu o selo que fechava a caixa e com os olhos fechados abriu-a em câmara lenta. «Não explodiu» já era um bom sinal. Ainda assim abriu os olhos a medo, e depois, quase alarmado pôs-se de pé. Um livro? Já tinha ouvido falar daqueles objectos mas era a primeira vez que via um. Junto com o livro vinha um cartão. Segurou-o e reparou na letra que era feminina:«Pensa: Na vida nem tudo são horrores». Sentiu um rubor a espraiar nas faces. Sorriu e soluçou ao mesmo tempo. Seria aquilo a felicidade?

A Avaliação

| segunda-feira, 6 de julho de 2009 | 9 comentários |
Ildefonso estava prestes a ser avaliado. A avaliação apresentava-se mais como uma condenação esperada do que, com um julgar imparcial dos seus actos, do seu real valor. Todos os anos era submetido àquele martírio que rapidamente desaguava numa humilhação. A sala parecia crescer de tamanho cada vez que o supervisor desfiava as suas faltas, os seus pecadilhos, a sua deficiente assertividade. Cada vez que o homem lhe apontava o dedo, Ildefonso minguava um pouco, até tocar com o nariz nos calcanhares. Quando mais se agachava mais o espezinhavam, era um ciclo. Chegado ao fim o grotesco espectáculo que era a avaliação, o veredicto redundava sempre no mesmo: «não reuniu as condições necessárias para transpor de categoria». Depois, Ildefonso agradecia e saía amarrotado da sala. Este ano porém, nada iria ser igual. Este ano, Ildefonso levara uma caçadeira para a avaliação.

La Fiesta

| sexta-feira, 3 de julho de 2009 | 5 comentários |
As bancadas estavam completamente a abarrotar. A multidão acotovelava-se para arranjar um bom lugar. Naquele fim de tarde solarengo, toda a sociedade de Remulak – A Grande, comparecera ao evento mais badalado dos últimos tempos. Ao centro na bancada superior, os conservadores, fumavam os seus charutos e discutiam as últimas da economia macro-cósmica. Os seus criados, munidos de abanadores mantinham o ar fresco a circular. Na bancada da direita, mais perto da arena estavam os filhos dos conservadores. Estes bebiam coca-cola e fumavam cigarros de mentol, contavam piadas curtas uns aos outros e soltavam risinhos histéricos. A sua presença ali não passava de um frete que faziam aos seus pais, era bem conhecida a sua propensão para ambientes mais resguardados. Todo o lado esquerdo do ringue, zona superior e baixa, era ocupado pelos radicais do movimento “Força Bocage”. Estes eram incansàveis, sempre batucando em tambores e tangendo bandolins, geravam um ambiente que se assemelhava muito a uma concentração metafísica. Entre uma passa e outra nos cigarros mágicos das tribos do sul, gostavam de provocar os filhos dos conservadores com ditos espirituosos:«Ó betinho, vai p'ró Caralho!».
Sozinho na arena pontificava Romualdo – O Matador. Vestido de preto, apesar do calor que se fazia sentir, como a morte, esperava pelo momento do confronto final. Munido apenas do seu humor sarcástico e de um exemplar gasto do Arranca-Corações, Romualdo sentia-se preparado. Aquela era uma boa tarde para andar à porrada. Largamente apoiado pelo movimento “Força Bocage”, estes não se cansavam de gritar:«Soltem a Besta! Soltem a besta!». E sem mais, a Besta foi solta. O silêncio invadiu todo o ringue e arena como uma doença má. Sequer um suspiro se soltou. Romualdo olhou a Besta nos olhos e fez-lhe sinal que avançasse. A Besta soltou um grunhido. Ajeitou a gravata ao pescoço, encostou os dedos indicadores à testa e avançou bufando para o Matador que, já se encontrava em posição de lhe dar umas chapadas.

O Palhaço

| quinta-feira, 2 de julho de 2009 | 4 comentários |

Quando o palhaço Anacleto foi atropelado, o condutor seguiu caminho sem lhe prestar qualquer auxílio. Anacleto espalhado pelo chão tingia de vermelho a passadeira, conferindo-lhe um aspecto tricolor tão próprio do mundo circense. Como tinha tempo para isso, meditou sobre a sua vida de saltimbanco que agora parecia chegar a um término antecipado. Viu o sorriso das crianças nas longas tardes de espectáculo e os tombos propositados que tomava por causa delas. Lembrou-se dos elefantes e dos trapezistas, dos funâmbulos e especialmente das contorcionistas. Uma vez apaixonara-se muito à parva por uma contorcionista chinesa, mas esta padecia de amores pelo Magnífico Lambrini – o Mágico de serviço. Desgostado correu o mundo na sua roulotte, de palhaçada em palhaçada, pintando a dor de alegria, forçando gargalhadas nos outros.
As pessoas começaram a aglomerar-se à sua volta, como sempre acontece nos acidentes trágicos. Ao longe, muito ao longe, já se descortinava o tinóni da ambulância que o iria levar para a última morada; sim, ele sabia que estava de saída.
Nos últimos momentos pensou em como gostaria de ter confessado a alguém que, a morte acidental do Magnífico Lambrini não tinha sido nada acidental. A reminiscência desprendeu-lhe um último sorriso e assim se ficou, sorrindo, como só os palhaços tristes sabem. Como não estava pintado ninguém o reconheceu.