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O Pedinte

| quarta-feira, 26 de maio de 2010 | 13 comentários |

Certa vez, de visita a uma cidade do estrangeiro, Zeferino deparou-se com um pedinte que lhe despertou a atenção. Foi na escadaria que levava ao Castelo; prostrado de joelhos, com a testa afundada nos antebraços e as palmas das mãos em concha viradas para cima. Não falava e não se mexia um centímetro que fosse, deixava-se estar apenas, em silêncio, como se pedisse clemência, num acto de tal abnegação que intrigava quem passava: estaria a pedir esmola, ou estaria a pedir perdão? As pessoas, intrigadas, seguiam caminho; receavam que ao deixar a esmola o pudessem despertar de tão profunda meditação.
Horas depois, já na vinda para baixo, Zeferino foi encontrar o homem no mesmo sítio na mesmíssima posição, como se o tempo não tivesse passado por ele, como se duma estátua se tratasse, como se não estivesse vivo. Uma diferença apenas: na concha das mãos aninhavam-se algumas moedas, alguém já tinha feito a experiência e confirmado a tese, era mesmo um pedinte.
Hoje, ao passar por uma esplanada, onde um grupo de senhoras trincava pastéis de nata polvilhados de canela, Zeferino, numa associação de ideias transviadas lembrou-se do mendigo estrangeiro:
- Um dia destes havemos estar todos como o pedinte – pensou – Uns de joelhos, outros a pedir esmola.

O Primeiro Dia

| terça-feira, 25 de maio de 2010 | 7 comentários |
- Vai-te vestir Adão! Olha a cacimba – avisava Eva com carinho e alguma preocupação.
- Não me apetece! - Retorquiu ele com ar amuado – Apetece-me maçãs.

A Sequência

| segunda-feira, 24 de maio de 2010 | 8 comentários |
Eram plácidos os domingos que passavam juntos. Iam para a praia e ele estava quase sempre de ressaca. Ela estendia-se ao sol e acendia cigarros enquanto ele sentia os miolos a fritar. O suor secava a meio caminho de lhe escorrer pelo corpo; os homenzinhos que lhe viviam no cérebro rebelavam-se. Atirava-se invariavelmente ao mar frio: gostava do choque nos sentidos, como se apanhasse um soco forte nas ideias. Ela tirava o top e mostrava-lhe as mamas dentro de água. São iguais, dizia ele, a audiência é que é maior. Riam-se e davam mergulhos. Ela queria arrebatá-lo à letargia dos domingos em que sempre o encontrava; levava-o a ver as esculturas na areia. Ele só queria vomitar: o fígado, as entranhas, o mundo. Olha um romano, dizia ele com indiferença embora adorasse os romanos. Parece estar a cagar, dizia ela, e riam-se muito, e as esculturas riam-se com eles.
Ao fim da tarde ele começava a sentir-se melhor. Retornavam. Pronto, dizia ela, já estás em casa. Foi um Plácido Domingo, respondia ele e riam-se. Pelo menos desta vez não te vestiste de mulher, sempre foi diferente – risos.
No covil, ele, deitava-se na cama que não era feita desde uma vida anterior e sorria ao pensar nela. Depois pensava na segunda-feira e vinham de novo os vómitos à garganta. Era o defeito do domingo, assinalava o fim de algo bom e antecedia o começo de algo mau. A vida acontecia entre dois domingos.

O Aumento Exponencial da Tristeza

| quarta-feira, 19 de maio de 2010 | 9 comentários |
- E agora pá, se não ganhamos este mundial...
- A crise aumenta.
- A crise aumenta sempre que estamos tristes.
- Não podemos ficar tristes então.
- Por outro lado, às vezes dou comigo a pensar que para sermos definitivamente um país do terceiro mundo, só nos falta   mesmo ganhar um mundial de futebol.
- Não podemos ganhar o mundial então.
- Se não ganhamos ficamos tristes...
- E a crise aumenta.
- A crise aumenta sempre que estamos tristes.
- O que nós precisamos é de fazer algo em grande.
- Uma feijoada.
- Exacto.
- A maior do mundo.
- Ficávamos contentes.
- Satisfeitos.
- Ninguém dava pela crise enquanto houvesse feijoada.
- E depois?
- Depois cerveja.
- Cerveja com quê?
- Com o mundial.
- E se não ganhássemos?
- Ficávamos tristes.
- E a crise aumentava...
- Aumenta sempre que estamos tristes.
- Vamos mudar de assunto, acho que já estou triste.
- Olha, sabes quem é que morreu?
- Quem???
- O Alambáceo!
- O que jogava matraquilhos?
- Esse.
- Ah!!! Morreu de quê?
- Teve um ataque de whisky.
- Morreu de bebida prolongada então...
- Não, foi de shot.

O Desencontro

| terça-feira, 18 de maio de 2010 | 8 comentários |
“...mas sobretudo a cidade
é um som
toca uma música boa
p’ra que eu me esqueça da alma ausente
que se perdeu pelas ruas
que eu não me perca também.”

Fausto Bordalo Dias


Ela olhava para o relógio e batia o pé nervosa. Já era tarde; quase pôr-do-sol e ele nada, atrasado como sempre. Tinham acertado os relógios um pelo outro para nunca se desencontrarem, e agora ali estava ela à hora marcada, à espera, sempre à espera de continuar a sua vida com ele. Acendeu um cigarro com a beata de outro e bateu o pé. Pôs a mão na anca, tirou a mão da anca, soprou, bateu o pé.
Noutra parte da cidade, ele, fumava e bebia cerveja. Ouvia jazz e escrevinhava no bloco de notas. Contava anedotas, pagava rodadas e fumava cigarros que acendia ininterruptamente. Para ele ainda era meio-dia; tinha o tempo todo do mundo, a banda principal ainda não subira ao palco. Acendeu outro cigarro, limpou o suor da testa, escrevinhou no bloco e mandou vir mais uma rodada.
Bateram as oito horas no sino da igreja e ela ainda esperava. Apagou o último cigarro com o salto do sapato como quem esmaga uma barata. Expirou o fumo como quem despeja o lixo, sem olhar para trás. Oito horas! A hora certa de ir para casa e fazer uma vida; com ou sem ele. Foi sem ele.
Chegou ao lugar combinado pouco depois do último encore. Ela já não estava. Sentiu-se sozinho e com frio. Escrevinhou no bloco versos de contrição. Bateram as oito horas no sino da igreja. Apagou o cigarro como quem apaga uma vida. Oito horas! Era de manhã. A hora certa de ir para casa e mudar de vida; com ou sem ela. Foi sem ela.

A Tempestade

| segunda-feira, 17 de maio de 2010 | 3 comentários |
Soara a sirene em Zebulon 5. Era o aviso de que uma tempestade solar se avizinhava. Havia tempo suficiente para os habitantes da colónia acabarem os seus afazeres e se deslocarem-se para casa em segurança, sem pânicos. Anacleto – O Palhaço, arrumou os malabares, as bisnagas de água, os balões coloridos mas manteve o nariz vermelho. Era a sua imagem de marca; sem ele as pessoas não o reconheciam, e, mesmo em tempos de crise e tempestades solares, o marketing era uma mais valia no mercado circense. Apanhou o Subcolon, que era o comboio subterrâneo das colónias que tinha nome de clister. Toda a gente o reconheceu: «Olha! É o palhaço Anacleto» gritaram uns «Ah! Ganda palhaço» sustentaram outros, e mesmo ali exigiram que fizesse um sketch – só para passar o tempo e animar a malta. Como não tinha nada preparado improvisou a velha pantomima do funcionário público, que enfia uma sonda rectal p'lo cu do utente acima, só para lhe avaliar o produto interno bruto. Foi um sucesso como sempre. Toda a gente aplaudiu: «Palhaço Anacleto, és o maior!» gritavam e davam-lhe palmadas fortes nas costas.
Chegou a casa dorido e cansado. O corpo já acusava a idade e a idade já acusava o excesso de palhaçada. Sentou-se no sofá em frente da televisão (há coisas que nunca mudam) sem desfazer as pinturas nem despir o fato de losangos amarelos e vermelhos. Abriu uma garrafa de whisky e deu um longo gole que lhe queimou suave a garganta. Na televisão, todos os canais mostravam as imagens da tempestade solar, que embora destrutiva, não deixava de ser um espectáculo exuberante. Tirou por fim o nariz vermelho quando o biológico já estava da mesma cor. Consultou o correio electrónico: não tinha mensagens novas.

Sexta-feira 14

| sexta-feira, 14 de maio de 2010 | 10 comentários |


«Depois da festa vem a tempestade». Era um ditado inventado à pressão por Romualdo, depois de assistir na televisão ao desbocar deprimente do Engenheiro da Nação. Percorria as ruas sujas do desperdício de alegrias e êxtases, contratadas para exultar a estéril passagem do pescador de homens; sentia-se triste por aquela gente, sentia-se triste por si, por fazer parte daquela gente. “Só saímos à rua pelos motivos errados ”- Cogitava Romualdo e um vento frio despenteou-lhe o cabelo como castigo. O próprio tempo pusera-se cinzento e ventoso e frio como que a anunciar a ressaca que aí vinha. Mais valia que chovesse e as pessoas se fechassem em casa e escondessem a sua vergonha; «doem-me os ossos, o tempo está a mudar». Dobrou uma esquina e pontapeou uma pedra que rolou pela calçada, um pedaço de cão irritante latiu enfezado e feriu Romualdo nos nervos. «Se lhe dou um pontapé encolhe-se todo a ganir, se lhe faço uma festa esquece-se que lhe dei um pontapé».
Cruzou-se com Esmeraldina e foram beber café. Estava ansiosa mas parecia radiante. Vestia de preto; a ansiedade ficava-lhe bem.

Malditas Consoantes

| segunda-feira, 10 de maio de 2010 | 17 comentários |
"Purple haze all in my brain
Lately things just don't seem the same
Actin' funny, but I don't know why
'Scuse me while I kiss the sky"

Jimi Hendrix

Abrenúncio acordou de uma sesta tardia, sobressaltado, com o barulho que a populaça fazia na rua. Era toda uma multidão que ora semi-nua, ora de rubras cores encasacada, alardeava pela via pública as suas consoantes preferidas. Três letrinhas apenas faziam a loucura de toda aquela gente. «Ah! Sim, chegou finalmente o dia» exclamou em voz alta Abrenúncio. Há muito que Abrenúncio esperava por aquela celebração, estivera quase para desistir, mas uma vozinha no canto do cérebro segredava-lhe que mais dia menos dia o Dia chegaria.
Remexeu o velho baú de alto a baixo e logo deu com a t-shirt cor-de-rosa do Jimi Hendrix que, basicamente era a sua farda para dias como aquele; estava um pouco coçada, o que só atestava da sua militância naquelas ramboiadas.
Saiu para a rua e deparou-se com um espectáculo mirabolante: no meio da celebração encontravam-se idosos e crianças, e também eles gritavam e pulavam para cima dos carros e buzinavam e agitavam-se ao som da música que era sempre a mesma. «Meu Deus!» pensou Abrenúncio «isto no meu tempo não era assim», mas depressa se desligou destes pensamentos e foi com alegria se entregou à festa – Purple haze all in my brain, lately things just don't seem the same – Cantarolou Abrenúncio enquanto se preparava para beijar o céu. De súbito a multidão, toda a uma voz, como se tivesse ensaiado durante anos desatou a berrar a plenos pulmões: BENFICA! BENFICA! BENFICA!
Foi por esta altura que Abrenúncio foi atropelado pela realidade como se esta conduzisse um camião TIR. Um safanão popular fê-lo acordar do sonho em que estava prestes a embarcar; o que o povo afinal gritava era SLB, SLB e não LSD, LSD, como ele originalmente pensara.
Cabisbaixo, com beicinho de amuo, retornou a casa arrastando os pés; «Pfff! Tanto barulho por causa da bola». Aquela não era definitivamente a sua festa. O Jimi Hendrix estampado na camisola cor-de-rosa voltou triste para o fundo do baú e Abrenúncio contentou-se com um cházinho de camomila que, assim como assim, também dá sono.

O Camelo e o Buraco da Agulha

| quinta-feira, 6 de maio de 2010 | 16 comentários |
O recinto estava polvilhado de vendilhões, como convém a qualquer templo que se preze.
Um homem arrasta-se trôpego pelo pavimento. No fim, uma parede; o homem insere uma moeda na ranhura e uma lâmpada de 30 watts acende-se. Um minuto certo está a lâmpada acesa, e com precisão matemática extingue-se ao sexagésimo segundo, reclamando assim a sua fome de vil metal. Para o homem prostrado a missão chega ao fim; a sua prece seguiu para Deus, o seu dinheiro para a EDP.
A multidão acotovelava-se, já não havia mais espaço, nem para a imaginação. Pessoas desmaiavam de pé; um helicóptero dos bombeiros sobrevoava a área e despejava uma carga de água em cima dos crentes, como se apagasse um fogo; a fé essa nunca se apagava e por isso eles continuavam ali, à espera; tinham pago a dízima, tinham cumprido a promessa, faltava a atracção principal.
Por entre holofotes coloridos acompanhados por uma orquestra monumental, o Grande Padre surgiu numa plataforma elevatória, sentado imponente num trono debruado a ouro e tisnado com a mais fina púrpura. Visto assim ninguém desconfiaria que o homem calçava as humildes Sandálias do Pescador; antes lembrava alguém que astuciosamente usurpara o ceptro de César – O Imperador. Era ele quem comandava a chusma naquela noite. Era o MC do momento. Estalou os dedos e milhares de velas acenderam-se a um tempo, dando conta do número de almas que por ali penavam; e o seu número era grandioso.
Quando a Senhora, no alto do andor finalmente surgiu, foi acometida de uma profunda tristeza; a sua expressão não deixava dúvidas, era de pura angústia. O espectáculo não era para menos: os pobres coitados, de joelhos em sangue, batiam palmas e gritavam hossanas; as mulheres acenavam um lencinho branco com uma mão e com a outra seguravam um funil por onde urinavam. Pairava no ar uma toada digna do seu povo: lamuriante, mansa, mal paga. Sob as luzes fortes do palco principal sobressaía o Grande Padre; com um sorriso enjoado não conseguia mais do que chocalhar as jóias.
Cá fora, no mundo real, a miséria continuava na mesma.

A Paixão Num Dia de Maio

| sábado, 1 de maio de 2010 | 27 comentários |
Amanhecera finalmente o dia em Remulak – A Grande. Não era um dia qualquer; era o dia que iria definir a vida de toda uma geração. Um risco invisível havia sido traçado na Cidade e, ou se estava de um lado ou do outro; não havia meio termo. A época das indecisões acabara. A inércia há muito que vinha fazendo os seus estragos, e, aquela que um dia tinha sido uma das mais belas repúblicas do cosmos, jazia quase morta, de tão apática se tornara. Os tecnocratas haviam corrompido o poder. Governavam com a ajuda de andróides que fiscalizavam e faziam cumprir as suas leis. As leis eram de betão armado ou tinham a forma de microchips de silica. Os remulakianos eram cordeiros marcados para abate; peças de carne para sacrifício; tudo em nome da Grande Máquina. Eram absorvidos, mastigados e reciclados em humanóides sem espírito; que fiscalizavam e faziam cumprir...
Pasquináceo agarrou na sua bandeira rubra e negra e dirigiu-se para o centro da Cidade. De todas as ruas, de todas as vielas e becos foram surgindo outros pasquináceos; remulakianos, que de tanto serem ofendidos e humilhados, caminhavam obstinados para o local marcado, puxados por uma força invisível que os unia a todos: a miséria.
O centro da Cidade cedo se tornou numa massa informe, qual coágulo de sangue a espraiar os seus tons de vermelho escuro. O burburinho daquela gente depressa se transformou num clamor que de tão estrondoso foi confundido com trovoada; na agitação alguém comentou: - Porra! Até que enfim que acordámos – e nesse momento o Palácio foi tomado de assalto, e os andróides que o defendiam nada puderam contra uma multidão ávida de mudança, sequiosa de justiça; reconheceram-se nela e abriram alas.
O senhor Engenheiro(ideólogo da Grande Máquina) e seus sequazes foram arrastados das faustosas poltronas dos seus gabinetes para a rua, puxados pela orelha, como se faz aos meninos mal comportados. E logo ali foram julgados por toda a população que exclamou a uma voz: Condemno!
O castigo foi aplicado de imediato a todos os meliantes e seus acólitos; a todos os juízes que os justificaram, a todos banqueiros que os sustentaram, a todos os sacerdotes que os benzeram. Foram atirados ao rio de pernas e braços atados. Não foi uma condenação à morte; os remulakianos sabiam que a merda geralmente boiava.
E era tal a paixão que vibrava naquele povo que até o céu começou a chorar de emoção. A chuva varreu das ruas os restos de ingnomínia, e sublinhou a necessidade de limpeza que a Cidade há muito exigia.

Para a Fábrica de Letras - Paixão