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O Comunicado

| terça-feira, 29 de setembro de 2009 | 0 comentários |
Quando o Palhaço-mor convocou a assembleia geral todos os restantes funcionários do circo ficaram num enorme estado de excitação. Eram sempre uma incógnita os comunicados daquele que era considerado o Rei dos Palhaços. Pérolas de sabedoria, sábias advertências, ou, se estivesse aborrecido, sérias admoestações, era o que se podia esperar de mais uma aparição fulgurante do Palhaço-mor. Ao fim da tarde, depois da hora de jantar dos ursos, era quando o Palhaço-mor gostava de arengar à congregação circense, e, à hora do costume, lá se encontraram todos; os funâmbulos, as contorcionistas, o domador de leões, os trapezistas, os restantes palhaços e até alguns cães adestrados. Não faltaram também os carregadores e montadores de tendas que, regra geral não entendiam nada do que era proferido pelo douto saltimbanco, mas  gostavam de aparecer e de ser vistos naqueles ajuntamentos sociais. Exactamente na hora marcada, nem mais nem menos um segundo(podia-se acertar o relógio por ele) o Grande Palhaço subiu ao palanque e num primeiro momento exibiu a sua cara séria, com as pinturas de palhaço zangado, dava a entender que o assunto era sério. Esticou o lábio inferior deixando a boca aberta por segundos antes algum som dela saísse. E o que finalmente saiu foi: «Hoje de manhã acordaram-me às 8h00», um clamor surgiu de imediato por entre a audiência; como é que era possível? E o Palhaço continuou «Eu só costumo acordar às 9h00.» Era verdade toda a gente o sabia, a indignação espalhava-se pelos presentes ainda suspensos das palavras do Palhaço que finalizou com uma (lá está) admoestação: «Que isto nunca mais se repita, pois sou capaz de ficar aborrecido», e, dito isto afastou-se na sua melhor pose de Palhaço-mor, o primeiro entre iguais.
Os presentes logo formaram grupinhos onde comentaram e analisaram a gravidade do comunicado. «É realmente um escândalo» ouvia-se neste grupo, «Ainda por cima à pessoa que foi» diziam aqueles mais além. Um dos palhaços comuns, que eram muito dados às teorias da conspiração, logo alvitrou uma hipótese: «Só podem ter sido os titereiros, eles é que têm a mania de mexer em todos os cordelinhos.»

Livre Arbítrio

| quinta-feira, 24 de setembro de 2009 | 3 comentários |

As Ratazanas

| terça-feira, 22 de setembro de 2009 | 9 comentários |
O Verão acabou e as eleições estão à porta. Duas formas comuns de acizentar os dias. Ao abrigo das nuvens escuras que ensombram o horizonte chegam as ratazanas. Cheias de bons modos, boas maneiras e promessas vãs, saem no princípio do Outono; que é quando é mais fácil tapar o sol com a peneira. O seu discurso é fastidioso, o seu sorriso é boçal, as suas intenções são venenosas, a sua mordidela é torpe. Amolecem-nos ao de leve o tempo suficiente de nos envolverem na sua ilusão. Depois seguem em caravana atropelando cães e gatos pelo caminho. São espertas estas ratazanas. Sabem que são espertas. Sabem o quanto somos mansos.
Pensava nisto Abrenúncio na esplanada dum bar em Paramaribo. Nunca o entardecer lhe parecera tão bonito, nunca o rum lhe soubera tão bem.

A Descoberta

| quinta-feira, 17 de setembro de 2009 | 4 comentários |
- Uma descoberta magnífica esta, doutor.
- Sim, modéstia à parte, podemos dizer que foi um grande passo para a civilização moderna.
- Ninguém diria que eles se afundariam tão rapidamente.
- O truque foi trasladar todo processo da água salgada para a água doce.
- E o porquê dessa mudança, doutor ?
- Bom, caro amigo, depois de muitos anos a estudar o homem-político, concluímos que este não tem consciência.
- E de que forma influencia isso a velocidade com que eles se afundam?
- É fácil de ver. A príncipio todos julgámos que, como não tinha consciência, o homem-político afundar-se-ia rapidamente, no entanto a experimentação provou-nos o contrário...
- Como assim doutor?
- É simples. No sítio onde deveria estar alojada a consciência, no homem-político não existe absolutamente nada, só o vazio. Vazio este que ao encher-se de ar inicia todo um processo de insuflação que resulta no boiar do político. Daí que, quando atirado ao mar, já de si propício à flutuação devido ao seu grau de salinidade, o homem-político era praticamente impossível de afogar.
- Mas, e permita-me a dúvida doutor...
- Concerteza.
- Por tudo o que acabou de explicar, não deveria o homem-político, flutuar também na água doce ainda que com maior dificuldade?
- Exacto. Foi por isso que lhe prendemos uma bigorna aos pés.
- Ah! Brilhante, magnífico, doutor. Não quero agourar, mas pressinto aqui um Prémio Nobel.
- Oh,...É muito gentil da sua parte.

A Moleza

| terça-feira, 15 de setembro de 2009 | 4 comentários |


Ildefonso arrastava-se pelo sofá imitando um qualquer animal invertebrado. Com os braços pendidos, erguia-se por cima das almofadas contorcendo-se lentamente até achar a posição adequada. De lábio inferior descaído e  olhos tardios, deixava-se estar até chegar a altura de rastejar para outro canto da sala. O telefone tocava a intervalos curtos, mas para Ildefonso o aparelho encontrava-se a anos-luz de distância. Mesmo que lá chegasse, os braços recusar-se-iam a funcionar, por isso «é escusado telefonarem» pensava Ildefonso à laia de mensagem de gravador de chamadas. Dormitava naquela modorra povoada de sonhos estranhos; onde podia correr, saltar e até voar a uma velocidade vertiginosa. Depois acordava com um fio de baba a escorrer-lhe do canto da boca, empapando-lhe a bochecha.
«Ahh!» Balbuciava. Gregor Samsa podia não saber em que ser repelente se havia transformado, mas Ildefonso sabia-o bem: «sou uma lesma!».

O Espelho

| quarta-feira, 9 de setembro de 2009 | 4 comentários |


Um dia, ao passar em frente a uma montra espelhada de uma qualquer casa de comércio, o homem teve um choque que o deixou combalido. A sua imagem, meu Deus, como havia mudado tanto sem dar por isso. Os olhos mais encovados do que o habitual, rodeados de pequenas rugas que lhe recortavam o cenho e a pele a evidenciar claramente que Newton tinha razão. Tinha envelhecido mais de dez anos sem nunca dar por isso. Mas como? Se quando se mirava em casa, o espelho lhe retribuía sempre a imagem jovial e fresca do antigamente, aquela que toda a gente sempre identificara com o seu charme. Arghh!!! Fora o seu espelho, bandido, querendo ser simpático para o dono, enganara-o durante todos estes anos. «Espelho mau, espelho cruel,...» Gritava o homem desesperado, arrastando-se pelo tapete da sala. Já não era ninguém, pensou, «fui ultrapassado pelo tempo, esse cancro maldito, e atraiçoado por uma amálgama de estanho e vidro.» Era toda uma auto-estima que caía por terra naquela tarde.
Dias mais tarde, estando aborrecido e em baixo, talvez um domingo à tarde, que era quando ponderava mais seriamente as ideias suicidas, o homem decidiu, assim sem mais nem menos, sair à rua para passear. Desta vez porém, iria vestido de mulher. Quando se sentou na esplanada do café que habitualmente frequentava, cruzou a perna e acendeu o cigarro que dependurava preguiçoso de uma boquilha. Pediu um vermute, que beberricou enquanto ia soltando, cheio de estilo, argolas de fumo. Sentiu um olhar posto em si que o observava em todos os movimentos; era a Rita. Voltou-se, e os seus olhares cruzaram-se por um instante. Ela corou muito, mas ainda assim lançou-lhe um sorriso malandro. «Ah! Ainda estou em jogo...» pensou ele satisfeito. Gradualmente sentiu o amor-próprio a regressar.

O Comprimido

| segunda-feira, 7 de setembro de 2009 | 2 comentários |
«Temos que cumprir o horário.» Era assim que Abrenúncio desfrutava agora a sua vida: a cumprir o horário. Eram muito importantes os horários; diziam-nos sempre onde estar e as horas certas para se estar lá. «A produção meus senhores, a produção é tudo...» Gritava o capataz enquanto circundava os cubículos «a produção não pode parar» acrescentava sempre no fim. «E eu que pensava que era o espectáculo que não podia parar» reflectia Abrenúncio. E então produziam, produziam muito. Produziam até se esquecerem do que estavam a produzir. Quando não estava a produzir estava em filas para o transporte de regresso a casa. Eram tão obrigatórias como cumprir o horário, as filas. Um jantar plastificado, uma cerveja quente e um pouco de entretenimento embrutecedor e estava pronto para mais uma jornada no mundo real, na maravilhosa da realidade, disponível em qualquer banca perto de si.
«Vamos lá meus senhores, vocês são a minha máquina oleada, a produção não pára...», de novo o capataz e a sua retórica infalível; eles eram a máquina e ele o condutor. «Matá-lo seria fácil» fantasiava frequentemente Abrenuncio «Depois,...Tomava o comprimido vermelho e acordava verdadeiramente para a vida.»
Após cumprir o horário, Abrenúncio dirigiu-se à enfermaria e queixou-se de dores de cabeça e pensamentos negativos. As dores cabeça nem tanto, mas os pensamentos negativos eram altamente desaconselháveis à produção. A enfermeira remexeu o dispensário e entregou-lhe um comprimido; vermelho desejou Abrenuncio de olhos fechados, mas não: era branco, como o coelho da Alice. Tomou-o e dirigiu-se para a fila dos transportes. Sentiu-se muito mais conformado.

O Dia Z

| sexta-feira, 4 de setembro de 2009 | 4 comentários |


O dia que Zeferino temia chegara sem se fazer anunciar. O vazio enchera-lhe a mente. A sua cabeça era como um túnel onde se cruzavam ventos a mais de trezentos quilómetros horários. As ideias eram atropeladas e não conseguiam agarrar-se às paredes do cérebro. Era o fim, o branco, as reticências...
A sua carne estava amolecida e tenrinha, como se tivesse sido martelada por um bando de skinheads com tacos de baseball. Na televisão, a Manela, com a sua boca de enxarroco vomitava postas de pescada e dava azo à mais recente histeria nacional. Os porcos olhavam para os humanos e não conseguiam disfarçar um certo sorriso zombeteiro.
O espírito de Zeferino, esse eufemismo sináptico, tinha encontrado uma nova paz, um novo descanso; uma espécie de nirvana mas sem o Kurt. Sentia-se cansado, mas daquele cansaço bom. Voltou-se para o lado, de costas para a televisão, soltou uma flatulência e adormeceu.

A Consulta

| quarta-feira, 2 de setembro de 2009 | 6 comentários |
- É este peso nas costas doutor, este peso que me encurva e me faz arrastar os ossos de bar em bar, de garrafa em copo...
- O senhor não tem nada nas costas, o senhor em primeiro lugar é parvo e depois tem tudo dentro da cabeça, e...segundo os meus registos tem também um karma dos mais pesados do país. O seu mal portanto é ser cabeçudo com mau karma, daí que o corpo lhe penda para a frente.
- Mau karma doutor? O senhor sabe que eu não acredito nessas coisas.
- Pois, eu também não sou doutor e no entanto o senhor não se cansa de me chamar assim. O senhor anda há anos a carregar o que nós na profissão chamamos de peso morto. Todo esse lixo que o senhor carrega dentro de si, essas pessoas que carrega consigo que não lhe merecem a boleia, todas essas lúgubres memórias, tudo isso é triste, tudo isso é lixo, tudo isso é fraco.
- Humm! Mas convenhamos doutor, não é assim tão fácil livrarmo-nos de memórias que nos custaram tanto a criar, a viver digo...
- O senhor gosta de Notre-Dame?
- Eu??? Mas porq...
- É que lhe está a crescer uma corcunda aí no cimo das costas.
- Diga-me depressa doutor, o que fazer?
- Primeiro: não me chame mais doutor.
- Check!
- Segundo: o que senhor precisa é dum clister cerebral.
- Um clister cerebral doutor? Mas então e isso aplica-se da mesma forma que...
- Não seja estúpido.