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II - trilogia lapidar

| domingo, 18 de novembro de 2012 | |

Dá cá a mão, disse-me ele, esticando o braço para que eu o agarrasse. Estávamos no topo de uma pilha de tijolos com a ideia de saltar para o primeiro andar de um prédio em construção. O movimento que fiz para lhe agarrar a mão provocou o desequilíbrio necessário na pilha para que esta se desmoronasse. Era o último da fila e caí da altura de um primeiro andar, o meu amigo logrou agarrar-se à varanda do prédio. Da queda não me lembro, acho que não senti nada; ao contrário dos filmes americanos nada se passou em câmara lenta, aliás, foi tudo muito rápido. Num momento estava lá cima, noutro estava cá em baixo. A princípio não sabia se havia de chorar ou não, e por isso deixei-me ficar apenas espantado. O resto da pandilha, sã e salva, riu-se a bom rir, daquele riso saudável da primeira infância, um riso automático e inocente: alguém caiu - alguém se riu. Ainda se lembram quando a vida era assim tão simples?
Senti que algo me empastava as calças de ganga; uma mancha escarlate (da cor do fato do homem-aranha, o meu herói da altura) alastrava-se um pouco abaixo do joelho. Apalpei cuidadosamente, e, no sítio manchado encontrei uma depressão que entrava pelas calças adentro: um buraco na perna. Para bom entendedor tinha sido esburacado por um tijolo. Aí sim, permiti-me chorar, para enorme gáudio dos meus companheiros de macaquices urbanas.
O meu pai, sonolento, acabado de sair do turno da noite, levou-me contrariado ao hospital. As minhas irmãs choraram por simpatia e a minha mãe rezou a São Judas, o santo das causas perdidas. Coseram-me e ainda hoje tenho uma cicatriz vistosa que impressiona as miúdas.
Vinte e muitos anos depois encontrei o meu amigo num parque de estacionamento. Não me causou impressão o facto de ele estar completamente pedrado. Mas, ainda que tenha tentado disfarçar, houve um pequeno pormenor que me saltou à vista: faltava-lhe a perna esquerda. Foi de picar nas virilhas, explicou-me. Estiquei-lhe a mão, como que a retribuir o gesto infantil do antigamente. Ele abriu a dele, pensando que lhe ia dar uma moeda. A princípio fiquei espantado, depois, quando me certifiquei que ninguém estava a ver: chorei.

6 comentários:

Catsone Says:
18 de novembro de 2012 às 10:38

Como foi escrito na 1ª pessoa não sei se são experiências próprias. Devo dizer-te que este texto está sublime, dos melhores que li pelo teu estaminé.
Com tanta coisa boa pela blogo afora e ainda querem que compre livros! Bah!

Anónimo Says:
18 de novembro de 2012 às 11:03

... adorei este texto. partilho da opiniao do Catsone.

El Matador Says:
18 de novembro de 2012 às 11:09

ah caraças, gosto mais dos outros dois.

Anónimo Says:
18 de novembro de 2012 às 11:40

isso é porque tu não percebes nada disto!!!! eheheheheheh :))))

Anónimo Says:
18 de novembro de 2012 às 22:10

Choraste, mostraste a tua sensibilidade, El Matador.
Bom conhecedor da Blibia, das estórias que li quando adolescente.
Fico sem palavras.
:)

Briseis Says:
20 de novembro de 2012 às 22:43

Não é apropriado dizer que quem se ri por último ri melhor, pois não? Até porque tu não riste.