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O Duplo

| quinta-feira, 29 de outubro de 2009 | 3 comentários |


O professor Otto Klism há muito que andava obcecado com a canção Der Doppelgänger de Franz Schubert. Sonhava com a música, recitava constantemente o poema e nas suas aulas de violoncelo, ainda que originalmente escrita para piano, era um das peças obrigatórias. Já para não dizer que quem não tocasse O Duplo na perfeição, arriscava-se a não seguir em frente, por muito bom executante que fosse. Os colegas estranhavam-lhe a cisma, mas tratando-se da sumidade que era todos lhe perdoavam a excentricidade.
Numa bela noite de luar, ao regressar a casa mais cedo que o costume devido à não comparência de um aluno, O professor Otto Klism encontrou a esposa na cama a satisfazer ruidosamente, e até um pouco desafinada, os seus ímpetos carnais. Qualquer outra pessoa reagiria à situação com surpresa, com fúria até, mas não o professor. «É o meu Duplo que ali está» pensou com uma alegria desmedida «Cheguei a casa ainda antes de mim». Aclarou a garganta, fechou os olhos e na sua melhor imitação de tenor rebentou em Si menor:
Ó tu doppelgänger! Tu pálido camarada! Porque arremedas a dor do meu amor/Que me atormentou aqui neste lugar...
O mancebo que até então não se apercebera do elefante lírico dentro do quarto, lívido de susto, largou um salto para fora da cama e acto contínuo escapuliu-se pela janela. Quando a pequena récita acabou, o professor Otto, de braços abertos como que abraçando uma multidão invisível, abriu os olhos satisfeito e perguntou à mulher «Então? Que tal me saí?» Fraulein Klism agarrada ao lençol em estado de choque, conseguiu soltar as mãos que lhe tremiam, e num aplauso muito arrastado gaguejou: «Bravo! Bravo!»

Vade Retro

| quinta-feira, 22 de outubro de 2009 | 8 comentários |
«Ai meu Deus, ai meu Deus, acudam depressa...» Era a dona Eufrázia que toda afobada corria pelas ruas estreitas da aldeia e bradava aos ventos «É o Anticristo! O Anticristo chegou à aldeia.» Cansada, pois a idade já não lhe permitia aquelas correrias, parou junto da casa da dona Ermelinda: «O que é que dizes p'raí mulher, o anticristo? Que disparate é esse?» Era verdade, que ela jurava por todos os santinhos, por Jesus Cristo, pela sua mãezinha e pelo Pai Nosso. O filho do demo chegara à aldeia e preparava-se para resgatar todas as almas para o seu pai, o grande demo, Belzebu, o chifrudo, e dito isto cuspiu no chão e fez o sinal da cruz três vezes sobre a testa. Não durou muito tempo para que um aglomerado de beatas aldeãs se juntassem à volta de Eufrázia e anuíssem na sua cisma com o Anticristo. «Já se esperava que ele atacasse por esta altura» dizia uma com um ar de quem percebia destes assuntos «aproveitou que os vermelhos estão no poder e depois com esta crise, já se sabe...» Que sim, que era mesmo isso, estavam perdidas se não fizessem alguma coisa. E depois logo o Anticristo, não era brincadeira, o senhor prior tinha que ser avisado. Foram em bando a correr até à casa da dona Alambácia que era onde o padre estava a “almoçar”. O homem ao escutar a vozearia que se fazia ouvir à porta da sua “anfitriã”, saiu espavorido, com o cabelo em desalinho e com a batina ainda desapertada: «O que é que se passa?» E lá explicaram a história toda ao padre, de como o Anticristo (de dois metros) chegara com os seus exércitos e desatara a comer criancinhas no meio da praça. «PARA A PRAÇA E EM FORÇA!!!» gritou o eclesiástico, e lá foram todas de saias arregaçadas pelo joelho, o padre inclusive, a correr para a praça troando assustadoramente «A aldeia, é NOSSA! A aldeia é NOSSA
No centro da praça um homem arrumava livros sobre uma banca improvisada - «Lá está ele» identificou a dona Eufrázia que liderava a matilha, e, saltando por cima das formais apresentações, saltaram para cima do homem com vassouras, ancinhos, crucifixos e até com as próprias mãos. Malharam no homem que foi um espectáculo nunca visto. Com as suas vozinhas esganiçadas gritavam: «Morre cão tinhoso» ou «vade retro» até que se deu o inevitável: o tinhoso morreu. Quando o boticário chegou para confirmar o óbito, fez mais do que isso, confirmou também a identidade do sinistrado. «É o jovem Abílio, da biblioteca itinerante.» Silêncio geral...O padre chegou-se à frente, como bom representante da sua fé e fiel protector das suas paroquianas, limpou as mãos à batina, tossicou e proferiu:«É bom de ver, o homem não devia andar para aí assim, a brandir livros às pessoas.»

À Chuva

| terça-feira, 20 de outubro de 2009 | 2 comentários |


O homem gostava de andar à chuva e pronto. Era uma mania como outra qualquer. Quando chovia apressava-se a sair de casa e fazer longos passeios. Gostava de tudo nos dias chuvosos, do cinzento do céu, do estrondear dos trovões e dos flashes dos relâmpagos. Era como se Deus estivesse a tirar-lhe uma fotografia, por isso sorria sempre para o céu dispondo-se numa pose mais ou menos teatral. Enquanto as pessoas corriam a abrigar-se nas arcadas dos prédios, ele deslizava pelo passeio e aterrava propositadamente nas poças de água, outro dos seus prazeres infantis, o de chapinhar na água das poças lamacentas. Quando chovia sentia-se o rei da cidade. Agradava-lhe que o seu reino fosse obscuro e que desagradasse ao resto da populaça, a felicidade das pessoas irritava-o. Chamavam-lhe maluquinho mas ele não se importava, aproveitava a dica para cantar: ...Mas louco é quem me diz, e não é feliz...

O Homem Novo

| domingo, 18 de outubro de 2009 | 2 comentários |
O senhor Laurentino era uma pessoa mudada. Para aqueles que são apologistas da ideia que um indivíduo não consegue mudar, nas suas filosofias e atitudes, o senhor Laurentino era um exemplo. Até no aspecto ele mudara, mas tal devia-se principalmente à idade. Os tempos de serial killer tinham ficado para trás e agora tornara-se num exemplar membro da sociedade que tanto aterrorizara. Os gestos pachorrentos, a paciência e bonomia que dedicava a todos os assuntos, a enorme afabilidade e candura com que ouvia os outros faziam dele um cidadão modelo; que o dissessem o seus vizinhos. Ao domingo ajudava na igreja a recolher os donativos e ficava sempre até mais tarde de conversa com o prior. Este não poucas vezes era convidado para almoçar com o senhor Laurentino no recato do seu lar. Nas palavras do padre ele era um pilar, um temente a Deus como nenhum outro.
Nos momentos que passava sozinho, o senhor Laurentino gostava de reflectir sobre o seu caminho, balancear a sua vida, pesar os prós e os contras. Não estava arrependido de nada, isso não, para isso era preciso ser portador de uma moral que a ele claramente faltava. Continuava a desprezar a sociedade e todos os seus mesquinhos participantes? Sim, embora agora encontrasse um novo prazer na sua relação com tais criaturas. Agora era-lhe indiferente. Até sentia às vezes um prazer dúbio na sua interacção com as chamadas pessoas normais. Gostava deste novo olhar, de alegria, com que o fitavam, muito oposto ao de histeria e desespero que punham sempre que o viam de cutelo na mão. Agora vibrava de excitação sempre que interagia com alguém, por saber que a poderia aniquilar a qualquer momento sem o fazer no entanto. Gostava da sensação de saber que as suas palavras tinham significado para alguém e que eram até esperadas como gotas de sabedoria. O respeito batia-lhe como uma nova droga, e ele sentia-se agarrado. Era um homem novo e redimido. O próximo passo: enveredar pela vida política.

Não Me Parece

| quinta-feira, 15 de outubro de 2009 | 6 comentários |
Quando Ildefonso saiu de casa pela manhã estacou à entrada. Estava um destes dias solarengos que de outono não têm nada. Sentia-se rabugento e implicativo, normalmente quando se sentia assim o dia corria-lhe da pior forma possível, era como se estivesse em disputa constante com as leis do universo, enfim...dias cabrões. Mesmo à sua frente o vizinho do andar de baixo passeava o cão que se entretia a cagar todo o passeio. Cumprimentou mal-disposto o cão e apeteceu-lhe correr com o vizinho a pontapés até ao fim da rua. No outro lado da estrada, na cabine telefónica, dois arrumadores acertavam os pormenores do pequeno almoço antes de se iniciarem em mais um dia de trabalho árduo. Ildefonso ainda antes de dar o primeiro passo, aquele que poria em marcha todo um dia que se afigurava amargoso pensou:«Humm! Não me parece.» Fechou a porta e voltou para casa. Deitou-se na cama como se tivesse gripe e ligou a rádio, «Humm! Jazz de manhã.» Acertou o despertador para dez anos mais tarde.

Terça-Feira 13

| terça-feira, 13 de outubro de 2009 | 0 comentários |
- O que me diz disto doutor?
- É simples. Alucinação!
- Alucinação doutor? Mas estão ali milhares de pessoas...
- Alucinação colectiva meu caro, há muito que os anarcas andavam a prometer deitar LSD25 no depósito de água.
- Mas não será isso um pouco cruel doutor? Para além de perigoso. Podemos inclusive entendê-lo como um acto terrorista.
- Antes pelo contrário, antes pelo contrário; Podemos considerá-lo como um acto de libertação no que toca ao factor humano, como estudo sociológico é uma experiência assaz interessante e como manifesto político é quase perfeito.
- As pessoas no entanto não parecem estar de acordo consigo doutor, ajoelham-se e rezam, é o que as vemos ali fazer.
- É assim meu amigo, oferece-se uma experiência de libertação às pessoas e o que elas fazem? Renegam-na, cobrem-na de mantos escarlates, entoam cânticos tenebrosos e choram de tristeza pela sua eterna escravidão.
- Preferem o conforto da escuridão ao inebriante baloiçar da luz.
- Exacto, em termos aristotélicos poderíamos afirmar que têm aquilo que merecem.
- E o caso das crianças doutor? As crianças não embarcam assim sem mais nem menos em vãs filosofias.
- Ah! Isso é diferente. As crianças comeram daqueles cogumelos que ali vê, sabemos que produzem os mesmos efeitos.

O Candidato

| segunda-feira, 12 de outubro de 2009 | 0 comentários |
A Chefe de Secção chegou ao departamento de tal forma inchada que quase não passava da porta. Quem a visse diria que ia explodir, tal não era a forma como avolumava. Tinha ganho o seu candidato, finalmente. Depois de muito ouvir aos seus subordinados afrontas e gracejos insinuados, depois de tantos anos de abstinência eleitoral, chegara o dia tão desejado. Porra! Até que enfim. A justiça havia sido reposta em Remulak - A Grande.
O homem, na sua boca, não era um homem; era o Rei que finalmente regressava para cuidar do seu povo tão mal amanhado. Pensam que se trata de um simples mortal, de um borra-botas, de um valdevinos qualquer? Não! Exclamava ela com toda a pujança de um tenor: «O homem é um doutor! Um doutor ouviram?» Os subordinados ouviam; ouviam e engoliam em seco. Um sapo daquele tamanho era praticamente impossível de engolir, ainda por cima inchado como estava, nem com vaselina. Zeferino, o distraído, gostava de encarar o cenário pelo seu lado positivo: «Não há-de ser nada» contemporizava, «só custam os primeiros quatro anos.»

O Paraquedista

| quarta-feira, 7 de outubro de 2009 | 4 comentários |
Quando Romualdo era pequeno andava sempre a cair. Não aquelas quedas naturais e até um pouco saudáveis que todos os miúdos da altura davam e que hoje são tão raras porque a criança pode-se magoar. Não, as quedas dele era aparatosos espectáculos aéreos dignos de um duplo de hollywood, e, sem redes nem amortecedores de impacto. A sua estreia foi logo aos cinco anos quando, descurando os avisos do pai, caiu do primeiro andar duma qualquer agência de viagens. A cabeça aumentou-lhe para o dobro e nessa noite não pôde dormir por ordem do médico. No ano seguinte entrou para a escola primária sem recordações nenhumas anteriores a essa data.
Talvez porque a memória a curto e a longo prazo lhe tivesse ficado afectada, experimentou o seu segundo voo logo aos oito anos. O céu estava limpo, o vento era fraco e as condições eram todas propícias a uma queda do primeiro andar de um prédio em construção. Este até teria sido um evento pouco digno de menção não tivessem sido os tijolos que lhe caíram em cima acto contínuo à queda. Um buraco na perna por onde conseguia ver o osso foi o rescaldo final do incidente; o pai levou-o ao hospital para ser cosido e desta vez, sorte das sortes, pôde dormir à noite.
Até perfazer a bonita idade de vinte e dois anos, Romualdo não voltou a cair. A maldição acabara, chegou a pensar. Caiu muito de bicicleta, partiu a cabeça duas vezes, mas sempre derivado a brincadeiras saudáveis, nada de especial. Como se disse, aos vinte e dois anos, já adulto inconsciente portanto, numa noite de copos e confusão numa discoteca maligna, enquanto tentava meter conversa com uma miúda gira, o inevitável desequilíbrio do ser fez com que Romualdo se descadeirasse do primeiro andar abaixo, conseguindo o prodígio de não acertar em ninguém. O copo de cerveja partiu-se e os cacos cravaram-se-lhe na mão. Desta vez chorou muito, não de dor que não lhe doía nada, mas por não suportar ver cerveja desperdiçada.
Até aos dias de hoje nunca mais caiu e já lá vão largos anos. Não tem saudades. Às vezes dá consigo a questionar-se: teria ele alguma desavença com a lei da gravidade? Ou seria Deus, que para o castigar do ateísmo de vez em quando o empurrava?

A Recordação da Escócia

| terça-feira, 6 de outubro de 2009 | 4 comentários |
Enquanto ela lhe contava a sua aventura por terras da Escócia, Abrenúncio pensava em garrotes. Qual seria o melhor garrote? O de seda? Humm, não sabia que tipo de imagem deixaria um garrote de seda; embora deixasse um cadáver mais bonito as ilações a recolher seriam quando muito dúbias. O garrote de aço estava fora de questão, tresandava a assassino contratado e ele queria que tudo fosse tratado com grande classe. Ela explicava-lhe como os diferentes tipos de malte formavam um blend, falava-lhe dos diversos sabores e aromas e da técnica de envelhecimento, ele anuía com a cabeça afirmativamente; «bom, não terá que ser necessariamente com um garrote» pensava. Como caminhavam lado a lado as mãos de ambos tocavam-se involuntariamente. Ela não se descaía, e como se nada fosse, continuava a dissertar sobre a Escócia e seus castelos assombrados.
As armas de fogo estavam fora de questão, faziam muito barulho e os seus nervos há muito que pediam era silêncio. As facas e derivados eram sempre uma trapalhada, tinham que ser muito bem manejadas e deixavam tudo sujo. Chegaram ao fim do parque e durante o ritual da despedida, enquanto mediam bem as distancias para que os beijos na cara fossem cientificamente de amizade e não suscitassem equívocos de qualquer espécie, ela passou-lhe um saco para as mãos: «Uma recordação da Escócia.»
Abrenúncio abriu o saco e tirou de lá uma generosa garrafa de single malt. O vidro era do mais espesso que já havia visto e o gargalo manuseava-se bem. Uma pancada seca e acabava-se tudo, sem sangue, sem barulho, sem complicações. Esboçou um sorriso de agradecimento: «Obrigado, vai servir-me na perfeição.» Ela ficou contente que ele tivesse gostado. Gostava de o ver assim: calmo, simpático e educado, parecia outra pessoa.

O Ar dos Balões

| sexta-feira, 2 de outubro de 2009 | 0 comentários |
Chegou a uma conclusão que resultava do cansaço que sentia. As dores que lhe atravessam o corpo, os ais dos tendões, as reclamações dos músculos, o reumático precoce da adolescência, tudo se conjugava de forma a mantê-lo sossegado, estático, inerte. Quando neste estados, o seu espírito, como o ar quente que faz subir os balões, inflamava-se e ascendia a outras planícies. Terras de felicidade e contemplação. Era todo um outro universo que se queria imutável – nothing's gonna change my world – trauteava contente. Razão tinha o outro que sentia prazer em não cumprir um dever, reflectia. E nestas filosofias que se querem pequeninas porque também elas às vezes cansam, viu com clareza: a dor é boa.