Abrenúncio admirou-se quando Romualdo não compareceu na escola primária à hora marcada. Sempre fora um indivíduo pontual e não gostava de esperar nem de se fazer esperado. Era um anti-Sebastianista nato. Passada uma boa meia hora ao frio e à chuva miudinha, que diz-se só molhar os parvos, Abrenúncio cansou-se e entrou para votar.
O acto em si, não tinha nada de especial. Uma cruz dentro de um quadrado e já está. Todo o peso do futuro da nação resolvido em menos de um minuto. O curioso era toda a multiplicidade de comportamentos que se acotovelavam no pequeno hall de entrada.
Romualdo havia de gostar disto, pensava Abrenúncio ao reparar nas senhoras com as suas roupas mais domingueiras, algumas muito pintadas, demonstrando um porte altivo, quase superior. Outras havia, que demonstravam claramente o corriqueiro que havia naquele gesto, apresentando-se quase de pijama. Também havia os que nunca sabiam qual era a sua mesa, os eternos perdidos, e ainda os que se posicionavam como se fossem as estrelas principais do acontecimento. Eram estes que irritavam Abrenuncio e enfureciam Romualdo: os chico-espertos. Há sempre um em qualquer ajuntamento. O que calhou a Abrenúncio naquela tarde, não se cansava de exibir ao seu vizinho de fila, a caneta com que ia votar. Como se fosse uma espécie de Excalibur a que só ele tivesse acesso. Depois desatou a papaguear uma qualquer conversa de comentador político e anunciou em voz alta, mais que uma vez, a sua intenção de voto. Era preciso que toda a gente soubesse. Volta e meia atendia o telemóvel e falava para toda a escola ouvir, como já era de esperar. Esta fauna…Não é muito diferente de uma ida ao Jardim Zoológico.
No regresso, perto de casa, parou num café para beber a proverbial bica do dia de eleições. O sítio estava apinhado; o café é o fórum do povo – reflectiu.
-A abstenção é que é uma merda – dizia alguém numa mesa perto do balcão.
-Pois – retorquia outro – É por isso que eu não sou abstémio. Risos
Encostou-se ao balcão numa ponta de onde podia observar todo o estabelecimento. Era um hábito seu, beber café e observar. Em pé junto ao balcão tinha uma vista privilegiada das gentes. O balcão era o seu púlpito, os clientes, o seu eleitorado. O povo não vota porque está farto de ser enganado. Cada ida à urna é como se lhe fizessem uma colonoscopia; ou talvez não, talvez seja apenas preguiça e apatia.
Estava nesta doce letargia a sorver demoradamente o café quando é sacudido violentamente por Labregoísio:
- Atão pá, já sabes o que aconteceu ao Romualdo?
- Não, ele não apareceu para votar.
- Pois pá, foi atacado por um Lyonce.
- A sério???
- Diz que sim, diz que foi horrível.
Os ataques de Lyonce tinham vindo a subir muito nos últimos anos, especialmente entre as camadas mais jovens. Era um flagelo aparentemente imparável, nenhuma das acções de prevenção até à data tinham surtido algum efeito. As vítimas caracterizavam-se por entrarem num estado de embrutecimento aterrador; fixavam catatónicas o aparelho de televisão e apresentavam uma lassidão generalizada, que se traduzia numa apatia aguda face a estímulos exteriores. Era uma visão realmente aterradora.
Coitado do Romualdo,...um moço tão novo.