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Sai da Frente Bento

| sábado, 26 de dezembro de 2009 | 5 comentários |
Strange a woman who tries to save                                           
What a man will try to drown.
And it's the rain that they predicted,
It's the forecast every time.
The rose has died because you picked it
And i believe that brandy's mine.

Tom Waits – Strange Weather

O sangue escorreu involuntário pelo braço, a senhora apressou-se a limpá-lo com algodão e álcool: «Sente-se bem?» Eh! Não se sentia muito bem, havia toda a questão da falta de amor pela vida, da falta de vida com amor, e o Papa, meu Deus como o Papa podia ser deprimente. Os pupilos de Freud viam ali uma chamada de atenção, uma forma gritante de sublimar uma frustração qualquer, ele não. Ele gostava das tonturas e dos suores frios, do desfalecimento e da cosedura final. Gostava também, senão principalmente, da lâmina fria a cortar o nervo tenso. O arrepio e depois o ardor; o cheiro da carne queimada.
Andou meio estremunhado a princípio; sentia as pessoas passarem-lhe ao lado e comentarem a sua amarelidão, as olheiras cavas e o mau aspecto geral. A visão nessas alturas afunilava-se e os ouvidos pareciam encher-se de algodão, de modo que, toda a experiência se tornava gratificante. Tudo menos o aborrecimento, a ignomínia, a frivolidade. Nestes momentos não sonhava, era tudo simples e concreto e real; ainda estava por inventar droga alguma que batesse mais que um estalo da realidade.
Passados poucos dias voltava à normalidade; sentava-se amorfo em frente da televisão e exercitava somente os dedos do comando. Volta e meia aparecia o Papa, meu Deus como ele odiava o homem.

O Dilema do Homem-Aranha

| quarta-feira, 23 de dezembro de 2009 | 4 comentários |


Quando o pai natal foi encarcerado por condenação de pedofilia e abuso de confiança agravado, a penosa tarefa de distribuir prendas às criancinhas foi entregue ao homem-aranha. Tudo se passara muito naturalmente; os pais há muito que haviam abdicado da educação dos seus descendentes e a forma que encontraram para acalmar os putos foi convencê-los de que se se portassem bem, um senhor mais velho lhes traria presentes. Esta decisão acarretou efeitos catastróficos para toda a comunidade infantil, que para além de interesseira se tornou excessivamente crédula em relação a homens com 'prendinhas'.
Agora o homem-aranha estava desesperado. A tia May, cada vez mais doente, carecia da presença consoladora do seu sobrinho pródigo. O aranhuço entretanto não tinha mãos a medir, como Peter Parker já tinha a agenda atafulhada: jantar com a família da namorada, visitar a tia ao asilo e beber copos com o amigo Flash Thompson depois da meia-noite. A sua identidade de aracnídeo não ficava atrás no que tocava a compromissos, todos contavam com "o das teias" para patrulhar a noite abençoada. E agora mais isto: entregar presentes a miúdos ranhosos pelo mundo inteiro. O super-homem, esse maricas, rápido o suficiente para sobrevoar o mundo em escassos minutos, havia-se baldado à grande e ninguém sabia dele. Como nunca passou pela imaginação de ninguém que o herói-insecto pudesse possuir uma vida privada este encontrava-se agora perante o dilema de ter que escolher entre a família e o dever. Sentia-se mais só que nunca naquela noite de Natal, poucos eram os que podiam compreender a sua angústia.

O Juízo

| quarta-feira, 16 de dezembro de 2009 | 2 comentários |
Quando chegou a altura do veredicto, Ildefonso ponderou bem na decisão a tomar. Uma condenação é coisa séria, não se produz assim do pé para a mão. Queria castigar os culpados, queria muito castigar os culpados, mas queria fazê-lo de forma diferente, com classe e pedagogia. Ildefonso era um inovador, as suas condenações era como que um belo quadro em que as cores estão todas em harmonia e a mensagem, mesmo que não se perceba, está lá à vista de toda a gente. Nos corredores dos tribunais de Remulak – A Grande era considerado um artista por alguns, outros reconheciam-lhe o brilho de um génio.
Quando se aproximava a data do espectáculo que era um veredicto de Ildefonso, toda a cidade se animava num reboliço. Os feirantes montavam os seus negócios e toda a rua do tribunal se transformava como se de uma verdadeira feira se tratasse; havia carrosséis, palhaços, malabaristas, ursos, algodão doce, farturas, e, cerveja com fartura. Havia desacatos e porrada até dizer chega, mas isso já era um hábito da Cidade, com ou sem veredicto, o povo animava-se como podia.
Chegou o dia V e toda gente correu a encontrar o melhor lugar, o melhor cantinho de onde pudesse ver e beber das palavras do Ilustre Meretíssimo. Abriu-se a janela do primeiro andar do tribunal e Ildefonso surgiu em todo o seu esplendor na sacada. Os aplausos e assobios estrondearam numa ovação demorada. Ildefonso, coberto com o austero manto cor-de-rosa salpicado de estrelinhas amarelas (característico dos magistrados), levantou os braços em sinal de silêncio e o público aquiesceu.
- O culpado...É o motorista... - Um rugido soltou-se da multidão; já estavam à espera, concordavam uns, outros não, mas é claro que só podia ser, alvitrava a maioria.
- Fica aqui condenado...(silêncio sepulcral)...A um puxão de orelhas. Nova inquietação por parte do povo, era uma pena muito pesada, que não, que não, que ainda devia ser pior para dar o exemplo.
- Mas... - Aí vinha a parte inovadora que todos esperavam. - Se prometer nunca mais voltar a fazer o mesmo...pode ir em liberdade. Lá estava o toque sublime que os deuses só distinguem a alguns.
A turba entrou em extâse ao ouvir estas palavras e de imediato se entregou à palhaçada, à porrada com fartura e à cerveja com algodão doce. Estava decidido, o resto do dia seria de festa.
Labregoísio, que era parvo, tentava deslindar uma manchete para o seu pasquim vespertino. Observava a comédia em que se havia tornado a tragédia humana e escrevinhava imbecilidades.

Beat

| terça-feira, 15 de dezembro de 2009 | 8 comentários |
Quando Abrenuncio saiu da sala de espectáculos ia completamente jazzeado da cabeça. Acelerou o passo e desceu a rua ainda sob o efeito do martelar, aparentemente descoordenado, dos instrumentos de percussão. Inspirou e expirou como se preparasse para encetar um solo. A noite estendia-se pela frente como uma escala pronta a ser percorrida com os dedos e ele estava com o beat todo em cima, eléctrico e pronto para o concerto. Quando chegou ao Bar da Desgraça estavam lá todos; ninguém consegue escapar ao som das trombetas do demónio quando estas procedem à chamada. Pediu de beber e juntou-se à confusão, a jam estava ainda no início mas a estroinice já se tinha instalado. “Gosto disto” pensou consigo. Gostava de facto do inebriante vaivém das multidões, da vertigem e do desequilibrio. Com o canto do olho reservado às ramelas matinais descortinou-a no meio da multidão. Sóbria e elegantemente vestida como sempre, acompanhava-se da já habitual gente bonita. «Ah! Gente bonita...» Gritou Abrenuncio para dentro «Vocês são mais bonitos mas nós somos menos parvos» e nesse momento estalou um contrabaixo num walking febril como que a confirmar o seu juízo. Os trombones e os tambores juntaram-se à festa e criou-se ali um inferno jeitoso.

Uma Vela

| quinta-feira, 3 de dezembro de 2009 | 22 comentários |
Quando bateu a meia noite o senhor Honório ergueu o copo de whisky e com a voz entaramelada brindou: «À tua puto,... Mais um aninho hein? Se soubesses o que se faz por aqui em teu nome, deixavas de nascer todos os anos». Emborcou o copo e como se lhe faltasse qualquer coisa voltou a enchê-lo. O senhor Honório na sua idade avançada aprendeu a desgostar o Natal. Sentado na poltrona em frente da televisão assistia a todo aquele espectáculo triste de ignomínia e publicidade. Acendia uma vela, que colocava à janela para alumiar o caminho das almas, e bebia whisky até desmaiar. A alma que ele queria encaminhar até junto de si era a da sua mulher que tinha morrido no Natal. Ele, que era um anarquista dos antigos, nem sequer acreditava em almas, nem em milagres nem no menino Jesus, mas o peso da solidão tornara-se ao longo dos anos numa saudade impossível de carregar. Sentia saudades da sua companheira e das noites de Natal passadas com ela. As recordações mescladas com a dor que sentia nos ossos traziam ao de cima o seu mau feitio e logo se punha a gritar impropérios contra um deus invisível: «P'RA QUÊ QUE FOSTE FAZER O NATAL NO INVERNO?» Dizia coisas destas e os olhos enchiam-se-lhe lágrimas, «Ai, ai» choramingava. Sentia saudades de si próprio, da sua força e juventude. Bebeu mais um copo e voltou a dialogar consigo próprio: «Já não sou ninguém, sou farrapo...um farrapo OUVISTE?» Voltaram-lhe as memórias da mulher, de como ela o acordava sempre com mimos na manhã do dia 25, e foi embalado nessas recordações de tempos felizes que se entregou a Morfeu. Morfeu, apiedou-se da tristeza engelhada do velho e na manhã seguinte já não o devolveu ao século.

Para a Fábrica de Letras - Natal