Não fossem as dores de cabeça fenomenais, não fosse um dia
ela ter tentado comer a sopa com o lado errado da colher, e, se calhar ninguém
teria descoberto que a minha mãe tinha um cancro no cérebro. Como era uma
mulher de guerra, capaz de suportar as maiores sevícias com um espírito estóico
digno de envergonhar Zenão de Cítio; aguentou-se quase até ao limite sem um
queixume.
Neste caso não houve lembranças nem angústias do passado,
também não houve fentanyl, nem nada. O
diagnóstico foi quase coincidente com o atestado de óbito.
Uma tarde porém (estas coisas parece que acontecem sempre à
tarde) lembro-me de estar à beira da cama dela, na nossa casa, num intervalo entre-dores,
e ler-lhe nos olhos um profundo assombramento. É que ela já não me reconhecia.
Eu então devia parecer-lhe um estranho qualquer que lhe entrara pelo quarto
adentro, no meio da sesta. Já não era o filho que ela via, antes um adolescente
qualquer, polvilhado de borbulhas; penugem bastante a despontar-lhe do lábio
superior.
Neste caso não havia o sentimento de culpa, nem o remorso,
nem aquela angústia materna de continuar a ver o filho a cair do primeiro andar
(continuamente) aos cinco anos. Nem sequer havia a lembrança de vê-lo chegar
a casa com um buraco abaixo do joelho devido a outra queda do primeiro andar, nem
sequer a lembrança das rezas a São Judas, o das causas perdidas. Não havia
sequer a clássica repreensão : Porra filho, quando é que vais parar de cair de
primeiros andares. E eu não pude responder-lhe que nunca mais cairia de outro
primeiro andar enquanto não fizesse os meus vinte anos. Não lhe disse nada
porque ela continuava a olhar-me com aqueles olhos assustados de quem diz: quem
é esta gente e o que é que eu faço aqui?
Ficámos assim uma tarde inteira, nem ela se importou, nem eu
chorei. Foi então que à noite voltaram as dores de cabeça terríveis e tiveram
que vir buscá-la pela última vez. O bombeiro, que a conhecia desde miúda, esse
sim, chorou que se fartou. Acho que gostava dela.
3 comentários:
24 de novembro de 2012 às 19:05
O sofrimento apoquenta-me.
Levas-me a recordações minhas, não muito atrás no tempo.
El Matador, por que queres recordar?
:)
25 de novembro de 2012 às 12:56
Por vezes é assim como um sopro que nos leva tudo... e ficamos nós, parados, quietos, impotentes para quem nos pareceu sempre invencível.Sem respostas e sem tempo.
26 de novembro de 2012 às 00:05
Certas tardes, valia mais uma pessoa cair de um primeiro andar do que ver cair-lhe tudo à volta...
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