O último jingle que ouviu antes de se apagar foi o de uma instituição bancária. Jingle bells, jingle bells, já há não há papéls, murmurou baixinho e deixou-se ir. Não há pior quadra que o natal quando se está sozinho. O aspecto desertificado que as ruas tomam na véspera a contrastar com a azáfama dos dias anteriores é irritante para quem não embarca na loucura consumista da época da “paz”. Mas qual paz? pensou Labregoísio; se pudessem comiam-se uns aos outros, e não era só no natal. O sorriso imbecil e estupidificado dos donos das lojas, que olham para os clientes como se fossem patos a depenar; a repetição constante do mantra das boas festas, no café, no quiosque, na repartição de finanças, era algo com que Labregoísio não conseguia compactuar; toda aquela hipocrisia, a bondadezinha lamecha, a felicidade plástica dos outros, arrrghhh...
Celebramos em Dezembro o nascimento de um Deus que matamos por alturas de Março. Fartamo-nos depressa, e é por isso que pelo meio há o futebol. Daqui a dois dias começa a guerra de novo: o mundo cão que nos domina todo o ano. À pessoa a quem arreganhámos a fronha e desejámos um santo natal, mostramos agora as garras, como quem diz: se te aproximas muito corto-te o pescoço. O natal traz ao de cima o que de melhor há em nós: gastar dinheiro que não temos e enfardar comida como se não houvesse amanhã.
Como tal, e por ser natal, Labregoísio auto-ofertou-se com uma garrafa de single malt. Não esperou pela noite para a abrir, não, que álcool desta categoria bebe-se a qualquer hora do dia. Brindou a si próprio e emborcou numa sessão que terminou, como sempre, com ele a desfalecer no sofá, em frente da televisão, sem saber muito bem se estava triste ou contente, se era dia ou noite. Jingle bells, jingle bells, invista num PPR, dizia a televisão quando Labregoísio apagou.
Acordou estremunhado com duas ideias fixas coladas ao pensamento. A primeira: ir à casa de banho mijar. A segunda: Caçar. Caçar? E era época para isso ao menos? Não sabia. O que é que se caça em Dezembro, perguntou-se a si próprio enquanto desalugava o whisky que tinha bebido durante a tarde: Renas! Ho Ho Ho, riu-se alto enquanto os vapores do malte lhe saíam pelo nariz confirmando que o álcool ainda estava activo no organismo. Foi à despensa buscar a sua ligeirinha semi-automática com mira telescópica, pôs as munições no camuflado que entretanto vestira e saiu resoluto; Hoje é um bom dia para morrer! Disse em voz alta. A sentença era dos índios americanos, que têm tanto direito a participar nas festividades como o velho finlandês. O que é preciso é seguir as setas.
Subiu à torre do sino da igreja da Sé, que ainda estava danificada desde o terramoto, acocorou-se e esperou pela meia-noite. A pouco e pouco iam chegando as famílias para a missa do galo. Nas suas melhores farpelas desfilavam pelo largo como numa passagem de modelos. Reinava um silêncio sepulcral, como se de um enterro se tratatsse e não a celebração de um nascimento.
À meia-noite em ponto o sino anunciou o novo dia: BELLS, BELLS, BELLS, BELLS. Um zumbido estonteante percorreu a cabeça de Labregoísio acentuando-lhe a embriaguez: Prontes, já nasceu o menino...E nisto desatou aos tiros, de cima para baixo, indiscriminadamente: jingle bells cabrões, jingle bells - berrou furioso. A multidão aos gritos corria descontrolada de um lado para outro em pânico. Finalmente temos animação digna de um rei - pensou Labregoísio. Os que caíam abatidos tingiam a calçada de vermelho. Era o vermelho do manto papal; o vermelho da capa dos legionários romanos; um vermelho vivo, muito parecido ao da farda do pai natal, que por sua vez assemelhava-se ao rótulo da gasosa americana. Era o vermelho do capote dos matadores. Eh lá! - exclamou Labregoísio – Que grande tourada que p'raqui vai.