Quando se põe este
levante, há um vetusto sentimento que se apossa de mim. Algo que vem
de longe, de uma outra época, algo tão distante quanto o sangue
árabe que nestas alturas me parece efervescer. É então que surgem
as ideias esquisitas e só me apetece vestir um colete armadilhado e
ir explodir para a praia. É uma coisa linda de se ver, a explosão:
a separação brutal das células, a carne que se estica até sair
estilhaçada do corpo; há pedaços de mim espalhados sem tino por
todo lado. Ali a boiar nas ondas é uma gaivota que me debica; mais à
frente nos meio das pedras é um caranguejo que me carrega. Há
pedaços de mim no meio da estrada a serem espezinhados pelos
turistas; um verdadeiro festival de sangue, tripas e carne dilacerada. O escândalo sucedeu-se quando um bom bocado de mim acertou em cheio na boca de uma virgem, que se bronzeava às
escondidas entre as dunas, partindo-lhe um incisivo. A princípio
ninguém quis acreditar pois parecia mesmo impossível: virgens no
meio das dunas.
A Matriz
- Morpheus, ó
Morpheus…Desatarracha-me lá esta merda do pescoço que eu quero ir
p’ra casa.
Foi assim que Abrenuncio
saiu do Matrix. Estava cansado e desiludido. Na matriz tudo era
ilusão e propaganda. A vida era superficial e passavam-se os dias em
anestesiada correria contra o tempo. Há que competir, produzir e
consumir para se poder produzir, consumir e competir: este era o
mote. No Matrix, a felicidade era o pote de ouro que estava sempre
mais além, sempre um passo mais à frente, inatingível, qual
miragem no deserto.
A realidade lá
fora é mais feia, suja e ainda mais dolorosa, diziam eles, o Matrix é a única
solução para uma vida de sonho passada a sonhar. O Matrix era a
cenoura que fazia andar o burro.
Abrenúncio descortinou a
manha do programador (ou não fosse ele o Escolhido) e viu a matriz
pelo que esta era: um condicionamento, um controle absoluto, uma
ditadura dos outros.
Nô mais matriz, nô
mais – Pediu Abrenúncio – Estou cansado e quero ser feliz.
E por isso se pôs a
gritar: Ó Morpheus, pá…
Uma História Simples
Uma história feita de palhaços e de circo. De anões voadores
e eunucos amestrados. De princesas gordas e elefantes de estimação. Uma
história simples; com trapezistas que caiem de costas e ficam magoados no
pénis. Do mestre de cerimónias que tinha fobia a multidões e gaguejava muito quando apresentava os números fazendo
com que as pessoas pensassem que a sua gaguez era ela também parte do número. Da contorcionista que um dia estando aborrecida torceu-se toda de forma a praticar cunnilingus
nela própria. Do Leão que se recusava a comer carne e emagrecia a olhos vistos.
Do palhaço pobre que também se recusava a comer carne e que toda gente pensava
que era porque estava em solidariedade com o leão quando na verdade era por
estar apaixonado pela princesa gorda. Da própria princesa gorda que comia a
carne que sobrava dos outros e que um dia confundiu o palhaço pobre com um
palito e usou-o para limpar os dentes. De como o eunuco amestrado foi uma vez
encontrado a folhear as revistas pornográficas do montadores de tendas e toda a
gente se riu muito; pois se era eunuco e amestrado para mais. De como o unicórnio
cor-de-rosa invisível um dia bateu as asas e nunca mais foi visto, deixando a
filha mais nova da mulher barbuda muito triste pois era com ele que gostava de
brincar às escondidas. De como o
engolidor de fogo se engasgou uma vez com um copo de água e toda a gente lhe
bateu violentamente nas costas. Do infeliz acaso em que o atirador de facas se
distraiu a olhar para as pernas da mulher do mestre de cerimónias e acertou sem
querer com uma faca num dos anões que passava por ali a voar. Do elefante de
estimação que cada vez que lhe pediam para dar a patinha esmagava alguém e era
por isso que ninguém lhe pedia para rebolar.
Uma história de família portanto, mas também de amor e comunhão, naquele que foi
considerado um dia o maior espectáculo do mundo.
#307
E pronto, com um simples
clique arruma-se tudo. Desliga-se a visão, o tacto, o cheiro e o
paladar. Tudo o que acaba rápido começa com um lento premir do dedo;
seja no gatilho ou no telecomando. Desliga-se a máquina de suporte
vital, desliga-se o coração, desliga-se o despertador. Tudo no mundo se desliga.
Despertador:
eis um nome bem colocado.
Todos os dias, somos arrebatados violentamente do mundo acolchoado do sonho, e
acordamos ansiosos para o sofrimento reciclado: despertamos
para a dor.
Pegadas na Areia
- ...Olho para trás e qual não é o
meu espanto quando só vejo um par de pegadas na areia. Onde é que estavas tu
quando eu mais precisei de ti?
- Ah, foi nessa altura que eu carreguei
contigo ao col…
- Outra vez essa história de andares
comigo ao colo, mas tu pensas que eu sou parvo ou quê?
- Mas é uma metáfora tão bonita.
- Metáfora? Querem lá ver que agora
deste em lírico?
- A bem da verdade se diga que eu
estive sempre contigo nos momentos mais dific…
- Tangas!
- Porque me arrenegas?
- Sabes onde é que tu estavas quando
eu precisei de ti na Páscoa?
- ???
- A beber copos e a comer pão com os
teus amigos.
- Mas isso foi na última ceia.
- Deixa-te de teorias. É verdade ou
mentira?
- Bem… Tenho que confessar que falas
a verdade.
- Eu sabia.
- O que posso fazer para te compensar?
- Quero um iphone.
Voo Nocturno
Ildefonso tinha uma tara
que muito desagradava a sua esposa: andar de bicicleta à noite. À
hora que as pessoas normalmente se iam deitar, depois de se
despedirem no facebook, àquela hora em que já começa a fazer
fresquinho, era quando Ildefonso agarrava na bicicleta e desatava a
pedalar rua acima, rua abaixo. Era um prazer como outro qualquer,
explicava ele à mulher, gostava de sentir o vento nocturno roçar-lhe
a fronha.
Hoje vou inovar, Maria, e
nisto agarrou no velocípede e saiu de casa. Maria não prestou muita
atenção, embrenhada que estava a copiar frases inteligentes do
Citador, mas depois, como se acordasse violentamente de um sonho,
resolveu ir à janela para ver o que é que o marido queria dizer com
aquilo do inovar.
Ai! - Exclamou Maria da
varanda ao ver Ildefonso percorrer a rua, em alta velocidade, montado
na bicicleta: todo nú. Ildefonso, não podia estar mais contente,
era um antigo sonho que finalmente concretizava. Sentia-se como se
atravessasse as nuvens a alta velocidade com o vento a sacudir-lhe o
corpo inteiro, é o que há de mais parecido com voar, pensou com os
botões que não tinha. Maria praguejava baixinho, volta para casa
cabrão, volta imediatamente para casa, apetecia-lhe gritar mas
continha-se devido às avançadas horas da noite.
Numa das indas e vindas
vertiginosas de Ildefonso, eis que a roda da frente se prende numa
brecha do asfalto (posta ali pelos deuses da coincidência) fazendo a
bicicleta empinar e cuspindo violentamente Ildefonso para o ar.
Nisto, vinha o vizinho do rés-de-chão a chegar casa, depois de ter
levado a passear o caniche irritante, quando vê Ildefonso passar
por ele num voo arcado, de badalo ao léu e sorriso na cara. Boa
noite vizinho, cumprimenta Ildefonso. Nem o vizinho, nem o cão
retribuiram o cumprimento, quedando-se apenas boquiabertos no meio do
passeio.
No primeiro andar, Maria,
de mãos na cara, aflita, não se contém e deixa escapar em voz
alta, Ah! desgraçado, ao menos cai de costas.
Misturas
Não há muito mais que
fazer disse-me ele, é tudo uma questão de como se mistura o vodka.
Em quantidades exageradas provoca sonolência acompanhada de
instintos violentos e autodestrutivos, por outro lado, em fraca
quantidade torna-se num sumo forte e acabas por beber mais do que a
tua conta. Há que descobrir a via do meio - como o Buda? - Exacto.
Anular todas as paixões, todas as expectativas, procurar viver na
verdadeira ataraxia. Como o vodka bem misturado? Aprendes rápido
jovem gafanhoto, lembra-te sempre do velho ditado tibetano: se
procuras deus, mistura bem o vodka.
O Altruísta
“Yet each man kills the
thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter
look,
Some with a flattering
word,
The coward does it with a
kiss,
The brave man with a
sword!”
Oscar Wild – The Ballad
of Reading Gaol
Peguei na máquina fotográfica e saí de casa com alguma urgência. Desatei a disparar a torto e a direito, indiscriminadamente: pessoas, animais, casas. Fotografar casas não dá tanto gozo como fotografar pessoas. As casas não se desviam, nem se agacham, nem gritam: vai fotografar a tua mãe, cabrão.
Só comprei a máquina
fotográfica porque não me venderam uma caçadeira. Um pequeno azar
para mim, uma grande sorte para o mundo dizem vocês. Discordo. A
máquina isola, congela e eterniza: a pessoa não morre mas fica ali
para sempre, naquela posição, presa em duas dimensões, sem voz,
sem cheiro, sem sabor; parada no tempo, todos os dias. Se alguém se
chegasse ao pé de mim e me perguntasse: olhe desculpe, o senhor
prefere ser fotografado ou levar com um tiro de caçadeira à queima
roupa mesmo em cheio nos intestinos? Eu cá prefiro o tiro de
caçadeira, diria eu sem pestanejar, quem é que quer ficado parado
no tempo? O indivíduo tem que se mover para a frente, tem que se
renovar, a sua felicidade depende disso.
Foi imbuído desse
espírito filantropo, dessa vontade altruísta de ajudar a sociedade,
que eu tentei comprar a caçadeira, mas recusaram-me essa vocação
missionária. Por isso fotografo, anonimamente. As pessoas que me
vêem passar, nem imaginam, que quem ali vai, só lhes deseja o bem.
A Bomba
Quando lhe pediram para
construir a bomba atómica, ele construiu a bomba atípica. Era uma
bomba que não explodia. Lançava-se na terra e ficava ali, apática
de tudo e de todos, uma bomba sem aptidão para a maldade. Passado
algum tempo as pessoas habituavam-se à presença da bomba e
deixavam de lhe prestar atenção; era mais um bibelot enorme que
estava espetado no meio do jardim. Os namorados beijavam-se na sua
sua sombra e as criancinhas usavam-na como escorrega. Era uma bomba
feita para a paz, portanto.
Um dia falaram-lhe de Oppenheimer e no papel relevante que este teve na construção
da bomba atómica. Esse Oppenheimer é um mariconço, retribuiu o
cientista, fazer bombas para destruir, qualquer um faz; agora um
bomba de inércia, uma bomba que pode ser usada por crianças,
adultos e idosos, uma bomba de brandos costumes, quem é que criou?
Quem? Eu!
#300
- ...É uma espécie de tristeza que se cola aos braços. Depois sobre pelos ombros e dispersa-se pelo corpo todo. É como uma película fina e branca nos olhos, que nos impede de ver decentemente...
- Como as cataratas?
- Sim, mas com menos água.
- Como as cataratas?
- Sim, mas com menos água.
Na Praia
Na praia não há
enganos. O que está ali é aquilo mesmo: a praia. Há a água, areia
e sol. Também há sol na cidade e no campo, dizem os especialistas.
Sim, é verdade! Mas na praia o sol sente-se mais em casa, faz parte
do pacote.
Na praia não há mentira
nem dissimulação. Ninguém diz que tem frio quando está calor. O
céu é azul e a areia é branca, e é assim que tem de ser, não nos
serve de nada dizermos o contrário. Para quê? As ondas enrolam-nos
porque está na natureza delas enrolarem, se não enrolassem, não
eram ondas.
Andamos semi nus na praia
para deus nos ver melhor, para lhe mostrarmos que já não temos medo
dele. Estamos aqui, dizemos, e agora? Roçamos corpos e cometemos o pecado original vezes sem conta. Só existe um pecado: não ser original. E deus, envergonhado vira a cara
por segundos. Cada segundo de deus corresponde a um milénio na
Terra.
O que eu gosto mais na
praia é da cerveja.