Sai do banho e cometi uma
das maiores anseiras da minha vida: desfiz a barba. Senti-me despido.
Uma brisa incómoda e estranha atravessou todo o meu ser. Lembrei-me
depois que estava efectivamente despido e vesti-me. Mas já não era
o mesmo. O indivíduo que se levantou de manhã não era o mesmo que
saía de casa agora; tinha havido uma evolução. Cortei cerce com o
passado cro-magnon e revesti-o de bálsamo perfumado homo
sapiens. Na rua ninguém me reconhece. A cara descoberta
encobre paradoxalmente a minha entidade, sou outra pessoa. O carteiro
não me reconhece, nem a menina no café; eh lá, pensei, olha que
isto ainda é capaz de ter as suas vantagens. Não mais vou ter que
aguentar as desmesuradas secas que o maluquinho da bola me dá todos
os dias, junto ao quiosque, quando compro o jornal. Dou-lhe os bons
dias e ele embrenhado nas páginas sebentas do
benfica-sporting-porto, não retibui, grunhe apenas.
Ao passar em frente de
uma loja reparo com o canto do olho que sou acompanhado por um
esbelto jovem modesto, quem será, interrogo-me. Viro-me
repentinamente e apercebo-me que o jovem não passa da minha própria
imagem reflectida na montra. Olha que surpresa agradável, inclino-me
para frente e cumprimento-me respeitosamente, o duplo faz o mesmo.
Como se de um verdadeiro
estranho se tratasse ninguém me reconhece no local de trabalho. Mas
se sou eu, reclamo. Eu também sou eu, diz-me um, eu somos todos,
atira outro. Mas eu sou mesmo eu, sou aquele eu que estava aqui
ontem, afirmo veementemente. Aquele que estava aí ontem era outro,
responde o chefe de secção. Outro que sou eu! Gritei já um pouco
irritado. Se é outro não pode ser voçê, além do mais ainda há
pouco disse que era eu. E nisto chamou a Segurança. Fui arrastado
para a rua por dois gorilas que me empurraram porta fora sem apreço
maior pela minha identidade. O dia não me está a correr nada bem,
cogitei por momentos. Olha do que eu me havia de lembrar logo de
manhãzinha, eu e as minhas ideias idiotas, agora nem sou eu nem o
outro; havia de cair-me um piano em cima por cada asneira que faço
na vida.
De caminho para casa sou
atingido por algo. Olho para trás
e não vejo ninguém, aliás, toda a rua está deserta. Agacho-me
para examinar o estranho objecto quando sou atingido outra vez, tu
queres ver, tu queres ver, irrito-me um bocado. Olho para o céu e
toda a pele se me arrepia em modo galináceo: do nada começara a
cair uma chuva forte de pianos de cauda.
9 comentários:
17 de abril de 2012 às 22:46
Pois se foste tu quem pediu um piano de cauda...
17 de abril de 2012 às 22:55
pois é, há deuses que castigam logo.
18 de abril de 2012 às 16:18
O Tim Burton era capaz de fazer um filme genial a partir disto... Tu tens qualquer coisa, meu rapaz! =) ...e, aqui entre nós, para toda esta gente que se anda a queixar da chuva, que vem em má época... Tomem lá agora pianos de cauda! Essa é que era!
18 de abril de 2012 às 20:00
essa do Tim Burton é interessante, até porque o Johnny Depp poderia perfeitamente fazer o meu papel.
18 de abril de 2012 às 20:14
Desfazer a barba é suficiente para alterar toda a fisionomia. Muito interessante esta história. Dava jeito choverem pianos. Beijinhos
18 de abril de 2012 às 20:22
dava jeito chover uma banda inteira, pra animar a malta.
19 de abril de 2012 às 18:50
"Pai! Posso estar aqui, a ver-te tirar a neve da cara?" diz-me o filhote...
Coço o cabelo, com estranheza,... desejando que ele não me imite. a médio prazo.
"Claro! Porquê?"
"É que tu picas, como o picante!"
Apologista de quem odeia a barba, ... sem dúvida! É uma reacção em cadeia, ... que desencadeia.
Um abraço do Canto de Cá ...
21 de abril de 2012 às 22:51
foi por cortares a barba que a chuva veio. estava a fazer falta El Matador, o homem que mata todas as hipóteses de ser ele próprio, e aos outros.
:)
22 de abril de 2012 às 20:49
por acaso aqui a chuva não veio com o corte de barba, isto nem sempre resulta :)
Enviar um comentário