Tenho a alma em
carne viva
E os cordões
desapertados
Cada vez que
troco os passos
Desfaço-me em mil bocados
Hoje de manhã, no
acto de me pentear e tentando alinhar os pêlos mais revoltos da ruiva barba que
me caracteriza, dei comigo a pensar: caramba pá, és um gajo deveras bonito. Acto
contínuo resolvi convidar-me para jantar. Uma coisa impessoal lá em casa, com
umas velas de cheiro, um vinho branco e uma massa feita à pressão. Já há umas
semanas que me circundava e mandava umas indirectas, a apalpar terreno, mas
nada… Nunca quis saber de mim. Hoje no entanto, fazendo uso de umas falinhas
mansas que só eu conheço e aproveitando que estava um tudo nada invulnerável,
telefonei-me e lá consegui convencer-me. Cheguei mais cedo que o combinado com uma
garrafa de vino e um ramo de flores.
Oh! Emocionei-me, não era preciso, Qual quê? Eu sou mesmo assim, um romântico invertebrado. Como cheguei antes da hora marcada dei comigo
ainda a fazer o jantar. Abri a garrafa de vino
e servi-me generosamente. Gosto de beber vinho enquanto me ensaio na cozinha.
Ultimamente acho que cozinho apenas como desculpa para poder abusar do vino. Sentei-me à mesa e ataquei as
entradas de queijo derretido com orégãos e azeite que tinha preparado. Hummm! Que
bom! Comentei e agradeci-me. Com o prato principal enchi mais um copo de vino e brindei-me. Que maravilha,
pensei, isto está a correr muito melhor do que tinha planeado. Geralmente fico
nervoso quando recebo visitas, mas desta vez, até me estava a portar
condignamente. Fiz os brindes habituais para um futuro e saúde melhor e
aproveitei como sempre para falar sobre mim: dúvidas, angústias e tudo mais.
Abanei a cabeça, fingindo-me interessado enquanto me ouvia: sou um bom ouvinte,
e para mais, conhecia bem aquela história. Depois do jantar, a pièce de résistance foi o whisky de
malte com que me felicitei. Não há dúvida que só uma pessoa como eu é que me
pode conhecer desta forma: pois se era exactamente a marca que costumo beber, mais
do que devia, advirto-me, ultimamente parece que tenho abusado do licor dos
deuses (da Escócia), sim, sim, mas não há-de ser por causa de uma noite que há-de
vir o mal ao mundo, retorqui. Tens razão, concordei e enchi mais um copo. Depois,
já no quarto, como se estivesse num qualquer simpósio questionei-me sobre o sentido do Amor. Parece que tenho andado a ler Platão às escondidas, O Banquete, nos intervalos dos intervalos de quando não faço nada. Pela
parte que me toca, argumentei, o amor são duas linhas paralelas que se cruzam de vez
em quando e que nunca se hão-de
encontrar nem no infinito, e disto não se lembrou Platão. É bem verdade, anuí,
pode dar-se o caso que nem sequer sejam paralelas, as linhas, e que uma seja
apenas uma projecção da outra, ou seja, a outra nunca esteve lá, compreendes?
Compreendo perfeitamente, já estás bêbado! Não é por aí, expliquei-me, a outra
linha nunca esteve lá, era apenas uma ilusão, um engano. É possível! Tenho que
escrever isto! Sentei-me ao computador sem reparar que me tinha deixado
desamparado à porta do quarto. Daí observei-me sentado ao PC em efervescente agitação
de conceitos que se escapavam pelo teclado, vítimas de um jantar e noite bem
regadas. Despedi-me até uma próxima altura mas sinceramente nem dei por ter
saído. Acabei com a excelsa liquidez caledónia e estirei-me ao comprido na cama, na diagonal, como gosto de fazer de vez em quando em noites de lua nova. Pensei em mim e na rudeza que foi o não me ter acompanhado até à porta.
Adormeci a borbulhar em malte na certeza porém de que
iria acordar bem acompanhado.