A grande aventura começou quando o homem se sentou. Tudo é possível quando um homem se senta, é todo um rol de possibilidades que se revela. «Somos um povo aventureiro e aguerrido...» é o locutor que o diz, o documentário começou agora: «...somos uma sociedade progressiva, reivindicadora dos direitos do ser humano, o mundo reconhece-nos o trabalho, reconhece-nos a aventura, as descobertas, o brio.» Foi quanto bastou ao homem para se sentir galvanizado. As palavras soaram-lhe como um toque a rebate, um despertar para a vida. Ele era um deles, fazia parte daquele povo valente, imortal, orgulhoso. Era a hora. Ele que sempre chorara quando o hino tocava antes dos jogos de futebol, sentia-se agora mais do que nunca, um cidadão. Era o mestre do seu cadeirão ao comando do seu comando; era o rei da sala, o treinador de sofá, o revolucionário de chinelos; campeão de pugilismo doméstico, com a unha mais comprida do mundo coçava a maior micose do universo.
«Agora é que vai ser!!!» gritou irritado contra a placidez dos móveis.
Intervalo.
Os gases nobres do plasma exortaram-no a uma outra vitória «compra, compra, compra...» em explosões de cores e compassos binários. «Hei-de comprar» vociferava o homem contra a pasmaceira da estante dos livros. «Hei-de comprar» tornara-se no novo hino. Ao mesmo tempo que abocanhava um pedaço de frango frito todo ele viajava boçal pela curvatura da cupidez. Abria muito os olhos quando mastigava, como se quisesse comer o mundo. Sorveu o balde de gasosa borbulhenta e lançou um arroto castanho que cheirava a amarelo. Convenceu-se que era um homem feliz, o mais feliz de todos. É para isso que servem as convenções sociais: para fingirmos que somos felizes.
Um pequeno aglomerado de banha, recheada de carne podre injectada de alegorias oleosas acelerou pela auto-estrada femoral até atingir o túnel de acesso à grande válvula. O trânsito a principio ficou só congestionado mas depois toda a circulação cessou por completo.
Foi uma longa viagem, a do homem. No fim, encontrou-se a si próprio: uma vez e outra e outra ainda. São duas as coisas às quais não se pode fugir: o destino e a comichão no escroto.
Para a Fábrica das Letras - Uma Longa Viagem
«Agora é que vai ser!!!» gritou irritado contra a placidez dos móveis.
Intervalo.
Os gases nobres do plasma exortaram-no a uma outra vitória «compra, compra, compra...» em explosões de cores e compassos binários. «Hei-de comprar» vociferava o homem contra a pasmaceira da estante dos livros. «Hei-de comprar» tornara-se no novo hino. Ao mesmo tempo que abocanhava um pedaço de frango frito todo ele viajava boçal pela curvatura da cupidez. Abria muito os olhos quando mastigava, como se quisesse comer o mundo. Sorveu o balde de gasosa borbulhenta e lançou um arroto castanho que cheirava a amarelo. Convenceu-se que era um homem feliz, o mais feliz de todos. É para isso que servem as convenções sociais: para fingirmos que somos felizes.
Um pequeno aglomerado de banha, recheada de carne podre injectada de alegorias oleosas acelerou pela auto-estrada femoral até atingir o túnel de acesso à grande válvula. O trânsito a principio ficou só congestionado mas depois toda a circulação cessou por completo.
Foi uma longa viagem, a do homem. No fim, encontrou-se a si próprio: uma vez e outra e outra ainda. São duas as coisas às quais não se pode fugir: o destino e a comichão no escroto.
Para a Fábrica das Letras - Uma Longa Viagem
23 comentários:
2 de agosto de 2010 às 10:07
Ah ganda viagem!
Este teu homem é qualquer homem sentado no seu sofá, sózinho.
É repetitivo dizer isto, mas gosto da maneira como escreves, gosto da crueza da coisa, gosto e pronto!
2 de agosto de 2010 às 11:41
Muito bom texto Matador. Mais uma vez deixaste-me a pensar na vida...eu emociono-mo quando toca o hino antes dos jogos,no entanto, nunca tive comichão no escroto.
2 de agosto de 2010 às 13:28
Divertido, irónico e inesperado. E, sobretudo, bem escrito.
Gostei.
2 de agosto de 2010 às 14:07
Fiquei de estômago embrulhado só de ler!
2 de agosto de 2010 às 14:20
Nada é perfeito, certo? Mas a sua participação é! Ri-me bastante. Este é o cidadão comum! Será que haverá algum incomum? Não me parece...
Parabéns!
2 de agosto de 2010 às 16:08
@Meldevespas:É o homem moderno do século XXI;
@Tulipa: Ainda bem que nunca tiveste uma comichão no escroto, seria no mínimo: irregular;
@Eduardina: Obrigado;
@Helena:Pois, é um bocado indigesto.
@Natália: Este cidadão é, cada vez mais (infelizmente), comum.
2 de agosto de 2010 às 18:15
Este é o tal retrato "certinho, direitinho" de tantos viajantes que por aí há ao volante, perdão, ao comando da TV e à volta de si mesmos. Bem captado.
2 de agosto de 2010 às 22:56
"Comichão no escroto" é muito bom. Desculpa lá, mas só a palavra "escroto" é medonha. Escroto. Repeat after me: escroooooto! Que horror. Mas continuas a escrever bem, lá isso é verdade. Olha, cá a mim dá-me comichão no calcanhar. Calcanhar também é muito mau. Mas escroto...
2 de agosto de 2010 às 23:16
A intensidade da viagem só cabe ao nosso próprio julgamento. Uma coçada no lugar certo pode ir mais longe e mais prazerosamente do que viagens
interplanetárias.
Texto divertido, irônico,
bem escrito e um tanto reflexivo.
Abraço.
Ricardo
2 de agosto de 2010 às 23:50
Irínico mas verdadeiro. E o pormenor da unha, que ainda prolifera em muitos homens.
Que horror.
Texto interessante.
Gostei
3 de agosto de 2010 às 03:11
@Luísa: revolucionários da estática.
@Roserouge: O Escroto de Aquiles é muito conhecido.
@Ricardo: É isso, a intensidade da viagem tá em cada qual.
@Desejo: O pormenor da unha não podia faltar, é um clássico. Obrigado, volta sempre.
3 de agosto de 2010 às 21:23
gostei bastante ! ;D
4 de agosto de 2010 às 11:40
Infelizmente, cada vez há mais pessoas a viver no sofá, a viver através da televisão, agarrados ao frango frito ou equivalente. E depois admiram-se de acabar a viagem da mesma maneira...
Gosto do pormenor da unha, mas falta o bigode e a barriga proeminente para ser um retrato completo.
Beijinhos
4 de agosto de 2010 às 18:40
@Miss Chatterton: Obrigado e bem-vinda.
@Tulipa Negra: Sim, o bigode e a barriguinha dão de facto um toque lusitano à coisa :)
9 de agosto de 2010 às 17:51
Mais uma bela participação.
Fez lembrar o homem do seven, que capitulou perante o pecado da gula.
9 de agosto de 2010 às 18:16
Realmente dá uns certos ares, sim. :)
16 de agosto de 2010 às 23:07
Matador, esta descrição de enfarte agudo do miocárdio (se bem interpretei o que escreveste) deveria vir em livros da especialidade!
16 de agosto de 2010 às 23:26
Ahahaha, interpretaste bem ò Catsone, não sei se os livros da especialidade concordavam contigo (quem os escreve, digo)
17 de agosto de 2010 às 00:22
"...compra, compra, compra...
"Eu não comprava este tipo nem por nada!
Adorei a do "mestre do seu cadeirão ao comando do seu comando"
18 de agosto de 2010 às 10:21
Sobretudo... deixa-nos a pensar.
Fantastico!
18 de agosto de 2010 às 10:48
Era essa a ideia. Obrigado SC.
23 de agosto de 2010 às 00:40
"É para isso que servem as convenções sociais: para fingirmos que somos felizes."
Grande texto - usas as palavras de forma nua e crua. Sem pretensões. Gostei.
23 de agosto de 2010 às 08:52
Contenta-me que tenhas gostado, Blue.
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