O barco deu em seco, apinhado de gente, a meio do canal. Uma multidão sacudida atemoriza-se. Romualdo conta-se entre estes mas não tem medo, a situação já não é original. A cidade ao longe cabe na palma duma mão, com os seus contornos amarelados e construções difusas; consegue-se tocá-la com a ponta de um dedo. Romualdo sabe que a nado facilmente chegaria ao cais, mas falta-lhe a coragem e é proibido. Falta-lhe a coragem para quebrar a lei. A lei é nova. Os corpos encharcados à soalheira roçam-se inquietos, insinuam-se, forçam-se nas narinas. O povo reclama alto e a algazarra navega em todos os canais auditivos. Somos um atentado aos sentidos. Em todos os sentidos. Somos verdadeiros, daquela verdade verdadeira que é feia e disforme e que incomoda o olhar como só a verdade o consegue fazer. A boniteza é falsa e de plástico, hermeticamente fechada, numa redoma algures, também ela de plástico. Os nossos túmulos têm a forma duma vida, moldados na pequenez e resignação. Romualdo balança-se na amurada com ganas de se atirar, mas não pode. É proibido. Proibiram-nos de nadar no canal.
6 comentários:
16 de agosto de 2010 às 23:17
Romualdo, arranjaste uma solução de ultrapassar o medo. É que ver as coisas ao longe cria-nos uma ilusão de tudo parecer ter solução. O problema é que ao longe nem sempre o que parece ser, é! Ah... e ainda existem as leis que se têm de cumprir, não é Romualdo?
16 de agosto de 2010 às 23:29
As leis são um empecilho para a natureza. As humanas pelo menos.
18 de agosto de 2010 às 11:53
O Romualdo está a ficar velho e resignado. Em todos os sentidos.
18 de agosto de 2010 às 14:26
Também me parece.
18 de agosto de 2010 às 14:30
Sr. Matador: Não se meta em assuntos que desconhece.
Dona Tulipa: Não é tanto estar a ficar velho (estamos todos), é mais estar a ficar cansado; das pessoas em geral e do senhor Matador em particular.
18 de agosto de 2010 às 15:18
:)
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