Abrenúncio não se decidia quanto à posição para escrever: se sentado se de pé. Sentado não conseguia parar de bater o pé enquanto o coração lhe batia na ponta dos dedos; as letras aninhavam-se em palavras cadenciadas com o coração e por isso só escrevia: tum-tum, tum-tum, o que se lhe afigurava um tudo-nada estúpido. Gostava de escrever de pé, como o Pessoa. A verticalidade facilitava o escoamento das ideias da cabeça para as mãos. Também olhava pela janela em busca de inspiração mas do outro lado não havia nenhuma tabacaria; havia sim um prédio, e a seguir, outro prédio e do outro lado, outro prédio. Toda a rua a bem dizer era formada por prédios e as outras ruas também, devia ser por isso que chamavam às ruas todas, cidade. De pé apetecia-lhe fumar enquanto assentava no papel as desventuras de mais um dia. Quando foi buscar um cinzeiro ouviu o Chico a cantar na rádio: por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz. Era bem verdade, e veio-lhe outra vez à cabeça aquele beijo que lhe dera ao canto da boca. Ou teria sido na boca mesmo? Era para ter sido ao canto e calhou em cheio nos lábios ou era para ter sido na boca e resvalou para o princípio da bochecha? Já não sabia. Andava com esta dúvida havia dias e volta e meia lembrava-se disso só para se atormentar. Esta questão geográfica dos beijos tem muito que se lhe diga. Voltou com o cinzeiro mesmo a tempo de se lembrar que já não fumava há pelo menos dois anos. Olha que chatice. É que o fumo quando se enevoa pelo quarto também cria um certo ambiente. Sentou-se outra vez e jogou as mãos à cabeça. Isto hoje não sai nem a ferros. Os dedos que lhe seguravam a testa tamborilavam mensagens em código morse que diziam: tum-tum, tum-tum. Foi isso que escreveu e desta vez pareceu-lhe bem.
Mensagens Encriptadas do Coração para as Mãos
Publicada por
El Matador
| sexta-feira, 20 de agosto de 2010 |
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25 comentários:
20 de agosto de 2010 às 22:45
Como eu compreendo isso :-)
No entanto deixa-me dizer que este texto é um verdadeiro rasgo de inspiração.
beijos
20 de agosto de 2010 às 22:56
Ahaha talvez porque tenha surgido da maior falta de inspiração.
21 de agosto de 2010 às 00:04
a mim também me parece muito bem. Tu és bom, pá!
21 de agosto de 2010 às 00:08
Muito Obrigado Peanut, isso vindo de ti é muito bom.
21 de agosto de 2010 às 01:49
O beijo tem que se lhe diga.Quando ele é bom, quente, sensual, tira-nos a razão. E querendo saboreá-lo na ausência do outro, por que motivo a mesma razão perde-se na sua lembrança?
Saboreá-lo é delicioso e único.
Esta falta de inspiração resultou num post delicioso, quase um beijo.
21 de agosto de 2010 às 01:57
Tem muito que se lhe diga.
21 de agosto de 2010 às 14:59
Adorei. Adorei. Adorei.
Gostava de ter palavras para escrever um comentário melhor, mas a preceito, mas não as tenho. Simplesmente, adorei. O título conquistou-me logo; entrei, e adorei cada palavra, cada frase, cada parágrafo. Parabéns. Muitos e muitos :)
21 de agosto de 2010 às 15:03
Obrigado pelo entusiasmo, Blue.
21 de agosto de 2010 às 15:13
E com o entusiasmo fugiu-me o "i" - queria dizer mais a preceito, mas acho que deu para perceber :)
21 de agosto de 2010 às 15:16
Sim, deu. :)
21 de agosto de 2010 às 15:18
Ah, e nada de agradecer que estas coisas não se agradecem. Sentem-se. E escrevem-se.
21 de agosto de 2010 às 20:22
Gostei muito. É difícil fazer chegar do coração às mãos mas tum-tum, tum-tum, dá para perceber a mensagem.
21 de agosto de 2010 às 20:37
Isso é que é preciso.
23 de agosto de 2010 às 10:28
"talvez porque tenha surgido da maior falta de inspiração"
Muitas vezes é nesses momentos que o artista cria as suas melhores obras, e tu és um artista homem!
beijos
23 de agosto de 2010 às 10:41
O artista agradece as tuas palavras.
ehehe já pareço um jogador de futebol a falar na terceira pessoa.
26 de agosto de 2010 às 08:48
Algumas palavras só fazem sentido quando conseguimos designar os sentimentos: tum-tum, tum-tum...
Adorei o texto e as referências (Pessoa e Chico são meus preferidos).
Beijo,
Ane
26 de agosto de 2010 às 09:04
Obrigado.
Gostei da nova imagem, Ane.
27 de agosto de 2010 às 05:44
Obrigada, querido Matador! =)
30 de agosto de 2010 às 16:56
Também me parece bem...muito bem!
Mas é imperdoável que o Abrenúncio não se recorde do beijo... imperdoável meu caro! :)
gosto tanto das tuas personagens que até me esqueço do "El Matador"
Bj
30 de agosto de 2010 às 17:07
O mensageiro não é importante.
31 de agosto de 2010 às 11:16
E então novidades?
beijos
31 de agosto de 2010 às 11:26
Novidades, novidades, só nas ilhas.
:)
1 de setembro de 2010 às 22:07
E com a falta de inspiração mais uma vez Abrenúncio consegue surpreender-me. tum-tum, tum-tum... achei genial!
Bjs
1 de setembro de 2010 às 22:17
Lala,long time no see.
tum-tum, tum-tum.
7 de setembro de 2010 às 22:50
indeed... tum-tum tum-tum :)
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