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A Paixão Num Dia de Maio

| sábado, 1 de maio de 2010 | |
Amanhecera finalmente o dia em Remulak – A Grande. Não era um dia qualquer; era o dia que iria definir a vida de toda uma geração. Um risco invisível havia sido traçado na Cidade e, ou se estava de um lado ou do outro; não havia meio termo. A época das indecisões acabara. A inércia há muito que vinha fazendo os seus estragos, e, aquela que um dia tinha sido uma das mais belas repúblicas do cosmos, jazia quase morta, de tão apática se tornara. Os tecnocratas haviam corrompido o poder. Governavam com a ajuda de andróides que fiscalizavam e faziam cumprir as suas leis. As leis eram de betão armado ou tinham a forma de microchips de silica. Os remulakianos eram cordeiros marcados para abate; peças de carne para sacrifício; tudo em nome da Grande Máquina. Eram absorvidos, mastigados e reciclados em humanóides sem espírito; que fiscalizavam e faziam cumprir...
Pasquináceo agarrou na sua bandeira rubra e negra e dirigiu-se para o centro da Cidade. De todas as ruas, de todas as vielas e becos foram surgindo outros pasquináceos; remulakianos, que de tanto serem ofendidos e humilhados, caminhavam obstinados para o local marcado, puxados por uma força invisível que os unia a todos: a miséria.
O centro da Cidade cedo se tornou numa massa informe, qual coágulo de sangue a espraiar os seus tons de vermelho escuro. O burburinho daquela gente depressa se transformou num clamor que de tão estrondoso foi confundido com trovoada; na agitação alguém comentou: - Porra! Até que enfim que acordámos – e nesse momento o Palácio foi tomado de assalto, e os andróides que o defendiam nada puderam contra uma multidão ávida de mudança, sequiosa de justiça; reconheceram-se nela e abriram alas.
O senhor Engenheiro(ideólogo da Grande Máquina) e seus sequazes foram arrastados das faustosas poltronas dos seus gabinetes para a rua, puxados pela orelha, como se faz aos meninos mal comportados. E logo ali foram julgados por toda a população que exclamou a uma voz: Condemno!
O castigo foi aplicado de imediato a todos os meliantes e seus acólitos; a todos os juízes que os justificaram, a todos banqueiros que os sustentaram, a todos os sacerdotes que os benzeram. Foram atirados ao rio de pernas e braços atados. Não foi uma condenação à morte; os remulakianos sabiam que a merda geralmente boiava.
E era tal a paixão que vibrava naquele povo que até o céu começou a chorar de emoção. A chuva varreu das ruas os restos de ingnomínia, e sublinhou a necessidade de limpeza que a Cidade há muito exigia.

Para a Fábrica de Letras - Paixão

27 comentários:

Unknown Says:
1 de maio de 2010 às 22:13

É, o povo unido jamais será vencido, bem apropriado ao 1º Maio...adorei a parte "Não foi uma condenação à morte; os remulakianos sabiam que a merda geralmente boiava."
Que vontade eu tinha de utilizar esta condenação em alguma pessoas...deste-me boas ideias :)
kisses

El Matador Says:
1 de maio de 2010 às 22:22

Um bocado de corda e um empurrão e já está. Simples e barato.

mz Says:
1 de maio de 2010 às 22:55

A paixão abrange todas as faces da sociedade.
Até uma revolução!

Muito bom.

El Matador Says:
1 de maio de 2010 às 23:53

É isso MZ.

Ginger Says:
2 de maio de 2010 às 10:56

ah ah! :p

Muito bom.

Ora aqui está algo que tanta falta faz ao nosso cansado país.
Muito actual este teu texto. ;)


*

El Matador Says:
2 de maio de 2010 às 11:27

Eheh, temos a paixão adormecida.

Johnny Says:
2 de maio de 2010 às 15:29

Mas d´-lhes trinta e tal anos e depois voltam ao mesmo... ou não necessariamente, mas a uma merda igualmente flutuante.

El Matador Says:
2 de maio de 2010 às 17:21

É preciso reciclar.

Lou Albergaria Says:
2 de maio de 2010 às 21:11

El Matador,

Queria apenas parabenizá-lo pelo seu texto, apesar de ser um estilo que não goste muito que é a ficção científica, mas do seu texto, em especial, achei muito interessante e com uma ironia bastante cáustica e inteligente. Parabéns!!!

Mas não posso me furtar de cumprimentar uma velha amiga que vejo aqui em seu blog, a Tulipa.

Como és ardilosa e competente!!! Também merece minhas sinceras felicitações. Aguardo-a ansiosamente em meu novo blog vago(O)risco.

BJS A TODOS!!!!

Pronta para o próximo round, Tulipa? Já estou quase terminando meu segundo livro, apesar de vc... ou talvez por causa de você...tic tac tic tac tic tac...prá vc tb, querida....

El Matador Says:
2 de maio de 2010 às 21:29

Obrigado Lou.

Teresa Diniz Says:
2 de maio de 2010 às 22:56

Pois é, El Matador, ainda bem que a paixão é exclusiva dos seres humanos, seja qual for a razão que a causa. As máquinas e os andróides não sentem essa paixão que faz mover o mundo.
Bjs

El Matador Says:
2 de maio de 2010 às 23:20

Ainda não, Teresa.

Lala Says:
3 de maio de 2010 às 00:22

É preciso ser-se apaixonado pela vida e pela terra! Muito bom este teu texto... Talvez um dia a nossa paixão adormecida volte a ser despertada por um qualquer 'Pasquináceo'!! Eu posso comprar as cordas!!

Beijinho**

El Matador Says:
3 de maio de 2010 às 00:27

Eu empurro.

meldevespas Says:
3 de maio de 2010 às 12:04

A revolta de um povo é a paixão suprema! Muito bom...eheheh esta realidade Remulakiana tem um quê de familiar..

El Matador Says:
3 de maio de 2010 às 12:13

Ehehe. é aqui perto.

Olinda Says:
3 de maio de 2010 às 15:59

:-) também inchas. :-)

El Matador Says:
3 de maio de 2010 às 16:01

:)

Olinda Says:
3 de maio de 2010 às 16:02

:-)

Joaninha Says:
4 de maio de 2010 às 11:19

"Não foi uma condenação à morte; os remulakianos sabiam que a merda geralmente boiava."

Uma dica para os remulakianos, uma pedregulho atado ao tornozelo resolve isso :-)

Está, como sempre, genial...

beijos

El Matador Says:
4 de maio de 2010 às 12:05

Obrigado Joaninha, é sempre bom receber sugestões eficazes.

Anónimo Says:
5 de maio de 2010 às 14:24

Essa paixão bem que poderia contagiar o povo brasileiro, pois estamos cansados de políticos desonestos, de péssimos administradores, de banqueiros inescrupulosos, de juízes desonestos...

É incrível como a paixão anima os seres humanos em todos os aspectos, sobretudo neste; paixão pela sua gente, pelo seu povo, pelo seu espaço.

Gostei muito do texto.
Parabéns pela escolha.

Abraço.
Ricardo Fabião

El Matador Says:
5 de maio de 2010 às 14:45

Nisso da desonestidade de políticos, banqueiros, administradores e juízes, cá em Portugal estamos igual.

Existe nos povos uma paixão adormecida que urge acordar.

Obrigado pela visita curvasdapalavra.

Unknown Says:
7 de maio de 2010 às 08:42

Excelente reflexão acerca da paixão coletiva! Faz-me lembrar da situação atual da Grécia.

Beijo,
Ane

El Matador Says:
7 de maio de 2010 às 09:35

Foi um bocado inspirado na Grécia, mas também no facto de Portugal estar quase na mesma situação.

Obrigado pela visita Ane.

Helga Piçarra Says:
8 de maio de 2010 às 09:50

O teu texto é quase um sonho que muitos gostariam de ver realizado. Uma critíca apaixonante, à miséria que nos tomou de assalto e à vontade de mudar. Muito bom!

Beijinho :)

El Matador Says:
8 de maio de 2010 às 13:27

É cada vez mais um sonho.

Obrigado Helga