“Quão pouco é preciso para ser feliz! O som de uma gaita.
Sem música a vida seria um erro.”
Friedrich Nietzsche
Alambáceo, o sem-abrigo acordou a babar-se. Deitado no chão, apenas um pedaço de cartão o separava da calçada. Sonhou que estava a comer um mil-folhas enquanto bebia uma coca-cola. «Estarei grávido?» perguntou-se, «Não, não pode ser, essas coisas só acontecem às mulheres». Arrumou o chão, varreu a calçada com o boné e guardou a “cama e a mesa-de-de cabeceira” na mochila. Saudou o senhor Abstrúsio, dono do quiosque e perguntou-lhe pelas notícias. O senhor Abstrúsio era como que uma espécie de agência Lusa para Alambáceo, e, como gostava de se fingir de pivot de telejornal, era com agrado que logo pela manhãzinha narrava as desgraças da nação e do mundo ao indigente. «Descobertos mais cinco casos de padres pedófilos» - lia o senhor Abstrúsio com voz grave - «Isso resolvia-se bem era com um ferro em brasa p'lo cú acima deles todos» sugeria Alambáceo. A nível local as notícias não eram mais entusiasmantes «Mulher com unha encravada morre na ambulância a caminho do Hospital» - As sobrancelhas do senhor Abstrúsio arcavam-se de indignação ao mesmo tempo que suspirava. «A culpa dessa e doutras é deste Governo!» rematava Alambáceo, «Ah! Se eu tivesse um ferro em brasa».
Depois de saciar a sede de informação, Alambáceo dirigia-se à sua esquina favorita afim de ganhar uns trocos para o pequeno almoço. Não gostava de mendigar, por isso tocava harmónica. Custava-lhe menos aceitar o dinheiro que lhe dispensavam se estivesse a fazer qualquer coisa, e a música é algo que faz falta às pessoas na cidade logo pela manhã. Alambáceo era aquilo a que ele próprio designava como novo pobre. Porém, ao contrário do novo rico que se torna boçal e arrogante quando a sua situação melhora substancialmente; o novo pobre, como Alambáceo, gosta de manter a sua dignidade através da prática de velhos rituais como a boa educação e a humildade.
Quando não estava na sua esquina, o senhor Alambáceo gostava de ir passear para o jardim. Gostava do ar fresco que por lá se respirava e sentia-se em casa; a natureza era o que lhe restava e podia ser dele, livre de pagamento, das oito da manhã às oito da noite.
Quando chegava a noite, o senhor Alambáceo dirigia-se célere para o local onde ficava o seu quarto improvisado de todas as noites. Se chegasse um pouco mais tarde que fosse o lugar era prontamente ocupado por outros. Já ia apressado quando algo o fez estacar; do balcão montra de um café, um mil-folhas olhava para ele com aquele ar malandro que ele tinha visto no sonho. Ficou longos minutos a contemplar o bolo, à espera que o sonho, por um qualquer passe de mágica, se tornasse realidade.
Naquela noite, Alambáceo dormiu sem sonhar.
Sem música a vida seria um erro.”
Friedrich Nietzsche
Alambáceo, o sem-abrigo acordou a babar-se. Deitado no chão, apenas um pedaço de cartão o separava da calçada. Sonhou que estava a comer um mil-folhas enquanto bebia uma coca-cola. «Estarei grávido?» perguntou-se, «Não, não pode ser, essas coisas só acontecem às mulheres». Arrumou o chão, varreu a calçada com o boné e guardou a “cama e a mesa-de-de cabeceira” na mochila. Saudou o senhor Abstrúsio, dono do quiosque e perguntou-lhe pelas notícias. O senhor Abstrúsio era como que uma espécie de agência Lusa para Alambáceo, e, como gostava de se fingir de pivot de telejornal, era com agrado que logo pela manhãzinha narrava as desgraças da nação e do mundo ao indigente. «Descobertos mais cinco casos de padres pedófilos» - lia o senhor Abstrúsio com voz grave - «Isso resolvia-se bem era com um ferro em brasa p'lo cú acima deles todos» sugeria Alambáceo. A nível local as notícias não eram mais entusiasmantes «Mulher com unha encravada morre na ambulância a caminho do Hospital» - As sobrancelhas do senhor Abstrúsio arcavam-se de indignação ao mesmo tempo que suspirava. «A culpa dessa e doutras é deste Governo!» rematava Alambáceo, «Ah! Se eu tivesse um ferro em brasa».
Depois de saciar a sede de informação, Alambáceo dirigia-se à sua esquina favorita afim de ganhar uns trocos para o pequeno almoço. Não gostava de mendigar, por isso tocava harmónica. Custava-lhe menos aceitar o dinheiro que lhe dispensavam se estivesse a fazer qualquer coisa, e a música é algo que faz falta às pessoas na cidade logo pela manhã. Alambáceo era aquilo a que ele próprio designava como novo pobre. Porém, ao contrário do novo rico que se torna boçal e arrogante quando a sua situação melhora substancialmente; o novo pobre, como Alambáceo, gosta de manter a sua dignidade através da prática de velhos rituais como a boa educação e a humildade.
Quando não estava na sua esquina, o senhor Alambáceo gostava de ir passear para o jardim. Gostava do ar fresco que por lá se respirava e sentia-se em casa; a natureza era o que lhe restava e podia ser dele, livre de pagamento, das oito da manhã às oito da noite.
Quando chegava a noite, o senhor Alambáceo dirigia-se célere para o local onde ficava o seu quarto improvisado de todas as noites. Se chegasse um pouco mais tarde que fosse o lugar era prontamente ocupado por outros. Já ia apressado quando algo o fez estacar; do balcão montra de um café, um mil-folhas olhava para ele com aquele ar malandro que ele tinha visto no sonho. Ficou longos minutos a contemplar o bolo, à espera que o sonho, por um qualquer passe de mágica, se tornasse realidade.
Naquela noite, Alambáceo dormiu sem sonhar.
6 comentários:
5 de abril de 2010 às 15:12
"o novo pobre, como Alambáceo, gosta de manter a sua dignidade através da prática de velhos rituais como a boa educação e a humildade."
Pormenor delicioso.
beijos
5 de abril de 2010 às 17:02
Obrigado Joaninha
bjs
8 de abril de 2010 às 22:33
Para ser perfeito, o teu Alambáceo deveria evitar as notícias da manhã. É que essa sede de informação, que nos contagia a todos, afasta-o do mais importante...e ele tinha tudo para poder sonhar nessa noite.
"Sem a música a vida seria um erro! kisses
8 de abril de 2010 às 22:47
Até eu devia evitar as notícias logo pela manhã, vão mal com a música que gosto de ouvir.
bjs.
16 de abril de 2010 às 12:37
Mesmo na sua dignidade e humildade de novo pobre, eu espero que o Sr., repito, Sr. Alambáceo não tenha deixado de sonhar de todo... Aconchegar-me-ia muito mais o coração que o sonho se tivesse ido apenas naquela noite... Ainda mais que, mesmo que se tenha demorado um pouco mais que o habitual, por causa do mil-folhas, não vejo que tenha perdido o seu "quarto" para outro.
*
Na sociedade em que vivemos existem milhares de "Alambéceos"! Outrora novos ricos... desses que não souberam calcular as suas pequenas fortunas e que acabaram por perdê-las. Existem outros Alambáceos, porém, que sentiram a força do abandono por parte dos seus. Ainda há aqueles que desistiram dos seus, apanharam o caixote mais próximo e se aninharam na quentura das calçadas.
Todos eles com um ponto em comum: a humildade... aquela que outrora jamais reconheceriam.
*
Belo! Enternecedor! Fantástico, como sempre!
Beijinho***
16 de abril de 2010 às 14:23
Eles andam aí, nós às vezes é que não notamos.
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