«Ai meu Deus, ai meu Deus, acudam depressa...» Era a dona Eufrázia que toda afobada corria pelas ruas estreitas da aldeia e bradava aos ventos «É o Anticristo! O Anticristo chegou à aldeia.» Cansada, pois a idade já não lhe permitia aquelas correrias, parou junto da casa da dona Ermelinda: «O que é que dizes p'raí mulher, o anticristo? Que disparate é esse?» Era verdade, que ela jurava por todos os santinhos, por Jesus Cristo, pela sua mãezinha e pelo Pai Nosso. O filho do demo chegara à aldeia e preparava-se para resgatar todas as almas para o seu pai, o grande demo, Belzebu, o chifrudo, e dito isto cuspiu no chão e fez o sinal da cruz três vezes sobre a testa. Não durou muito tempo para que um aglomerado de beatas aldeãs se juntassem à volta de Eufrázia e anuíssem na sua cisma com o Anticristo. «Já se esperava que ele atacasse por esta altura» dizia uma com um ar de quem percebia destes assuntos «aproveitou que os vermelhos estão no poder e depois com esta crise, já se sabe...» Que sim, que era mesmo isso, estavam perdidas se não fizessem alguma coisa. E depois logo o Anticristo, não era brincadeira, o senhor prior tinha que ser avisado. Foram em bando a correr até à casa da dona Alambácia que era onde o padre estava a “almoçar”. O homem ao escutar a vozearia que se fazia ouvir à porta da sua “anfitriã”, saiu espavorido, com o cabelo em desalinho e com a batina ainda desapertada: «O que é que se passa?» E lá explicaram a história toda ao padre, de como o Anticristo (de dois metros) chegara com os seus exércitos e desatara a comer criancinhas no meio da praça. «PARA A PRAÇA E EM FORÇA!!!» gritou o eclesiástico, e lá foram todas de saias arregaçadas pelo joelho, o padre inclusive, a correr para a praça troando assustadoramente «A aldeia, é NOSSA! A aldeia é NOSSA!»
No centro da praça um homem arrumava livros sobre uma banca improvisada - «Lá está ele» identificou a dona Eufrázia que liderava a matilha, e, saltando por cima das formais apresentações, saltaram para cima do homem com vassouras, ancinhos, crucifixos e até com as próprias mãos. Malharam no homem que foi um espectáculo nunca visto. Com as suas vozinhas esganiçadas gritavam: «Morre cão tinhoso» ou «vade retro» até que se deu o inevitável: o tinhoso morreu. Quando o boticário chegou para confirmar o óbito, fez mais do que isso, confirmou também a identidade do sinistrado. «É o jovem Abílio, da biblioteca itinerante.» Silêncio geral...O padre chegou-se à frente, como bom representante da sua fé e fiel protector das suas paroquianas, limpou as mãos à batina, tossicou e proferiu:«É bom de ver, o homem não devia andar para aí assim, a brandir livros às pessoas.»
No centro da praça um homem arrumava livros sobre uma banca improvisada - «Lá está ele» identificou a dona Eufrázia que liderava a matilha, e, saltando por cima das formais apresentações, saltaram para cima do homem com vassouras, ancinhos, crucifixos e até com as próprias mãos. Malharam no homem que foi um espectáculo nunca visto. Com as suas vozinhas esganiçadas gritavam: «Morre cão tinhoso» ou «vade retro» até que se deu o inevitável: o tinhoso morreu. Quando o boticário chegou para confirmar o óbito, fez mais do que isso, confirmou também a identidade do sinistrado. «É o jovem Abílio, da biblioteca itinerante.» Silêncio geral...O padre chegou-se à frente, como bom representante da sua fé e fiel protector das suas paroquianas, limpou as mãos à batina, tossicou e proferiu:«É bom de ver, o homem não devia andar para aí assim, a brandir livros às pessoas.»
8 comentários:
22 de outubro de 2009 às 00:58
Excelente alegoria! :)
1. «PARA A PRAÇA E EM FORÇA!!!» gritou o eclesiástico, e lá foram todas de saias arregaçadas pelo joelho, o padre inclusive, a correr para a praça troando assustadoramente «A aldeia, é NOSSA! A aldeia é NOSSA!»
O eclesiástico lembra-me o Tony de Santa Comba Dão...
2. «É bom de ver, o homem não devia andar para aí assim, a brandir livros às pessoas.»
Assemelha-se ao Saramago...
22 de outubro de 2009 às 08:27
Ehehe,têm as suas parecenças sim senhor. Pronto, agora que fui descoberto só me resta renunciar à minha cidadania.
22 de outubro de 2009 às 12:38
ah...pensei que fosse o Saramago :)
mas, não, certamente que não, o homem não brande livros, só mau feitio!
22 de outubro de 2009 às 14:29
Ahahah. O Saramago no fundo gosta é de uma boa polémica de raça lobo.
As beatas como ninguém as fuma, ficam irritadiças e intolerantes.
28 de outubro de 2009 às 12:04
Olha pá,
O Saramago não és, por três razões simples, primeiro tens uma imaginação delirante, fina e com um sentido de humor delicioso. Segundo fazes pontuação. Terceiro não és chato.
logo, não és o Saramago.
adorei o "anfitriã" e o "almoçar"
28 de outubro de 2009 às 14:23
Obrigado Joaninha. Os teus comentários deixam-me sempre bem disposto e acalentam-me o resto do dia.
E detectaste o "Almoçar" e a "Anfitriã", ainda bem, estava a ver que ninguém notava nesses pormaiores.
29 de outubro de 2009 às 22:01
Estás de férias de blog ou também andas fraquinho?
29 de outubro de 2009 às 22:03
Ando com menos tempo para dedicar ao blog do que gostava. Ainda bem que apareceste, também já não te via há tempos.
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