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O Comprimido

| segunda-feira, 7 de setembro de 2009 | |
«Temos que cumprir o horário.» Era assim que Abrenúncio desfrutava agora a sua vida: a cumprir o horário. Eram muito importantes os horários; diziam-nos sempre onde estar e as horas certas para se estar lá. «A produção meus senhores, a produção é tudo...» Gritava o capataz enquanto circundava os cubículos «a produção não pode parar» acrescentava sempre no fim. «E eu que pensava que era o espectáculo que não podia parar» reflectia Abrenúncio. E então produziam, produziam muito. Produziam até se esquecerem do que estavam a produzir. Quando não estava a produzir estava em filas para o transporte de regresso a casa. Eram tão obrigatórias como cumprir o horário, as filas. Um jantar plastificado, uma cerveja quente e um pouco de entretenimento embrutecedor e estava pronto para mais uma jornada no mundo real, na maravilhosa da realidade, disponível em qualquer banca perto de si.
«Vamos lá meus senhores, vocês são a minha máquina oleada, a produção não pára...», de novo o capataz e a sua retórica infalível; eles eram a máquina e ele o condutor. «Matá-lo seria fácil» fantasiava frequentemente Abrenuncio «Depois,...Tomava o comprimido vermelho e acordava verdadeiramente para a vida.»
Após cumprir o horário, Abrenúncio dirigiu-se à enfermaria e queixou-se de dores de cabeça e pensamentos negativos. As dores cabeça nem tanto, mas os pensamentos negativos eram altamente desaconselháveis à produção. A enfermeira remexeu o dispensário e entregou-lhe um comprimido; vermelho desejou Abrenuncio de olhos fechados, mas não: era branco, como o coelho da Alice. Tomou-o e dirigiu-se para a fila dos transportes. Sentiu-se muito mais conformado.

2 comentários:

roserouge Says:
8 de setembro de 2009 às 23:32

Nem me fales em horários! Já me tinha desabituado... tão bom, não ter horas para nada!

El Matador Says:
9 de setembro de 2009 às 01:57

...ter um livro para ler e não o fazer...