Estrupício soube logo que a vida lhe ia correr mal quando em miúdo, na manhã de natal, descobriu no sapatinho uma bola de futebol em vez do lança-chamas que tinha pedido. Um rancor profundo que o acompanharia para o resto da vida nasceu ali, numa fria manhã de inverno, sentado no chão junto à árvore de natal.
São coisas que não se fazem a uma criança, um desapontamento destes. Cerrou os punhos franziu os sobrolhos e foi para o quarto, não sem antes lançar um olhar de profundo ódio aos pais que, sentiram o sangue gelar como se acabassem de ser violados por um icebergue. Poucos dias após o incidente, já o natal se esvaía em sais de frutos, quando a mãe do pequeno Estrupício encontrou o gato Nicolau congelado na arca frigorífica. Seria o primeiro de diversos animais de estimação que morreriam em condições misteriosas. Os anos passavam e o lança-chamas continuava sem se produzir. O natal em casa do pequeno Estrupício deixou de se celebrar e começou a ser visto como um tormento, algo que quanto mais depressa passasse melhor; como quando arrancamos um dente.
Os pais do pequeno Estrupício acabaram por se divorciar e foi uma batalha dura nos tribunais por causa da custódia do miúdo: ninguém queria ficar com ele. Estrupício foi enviado para a adopção.
A família que acolheu o pequeno Estrupício era do melhor e mais gentil que se podia encontrar numa família respeitadora e cristã, e talvez por isso estranharam, mais do que o desaparecimento do cão, a mutilação indiscriminada dos ícones religiosos que ostentavam por toda a casa.
Apesar de tudo educaram Estrupício o melhor que sabiam, na bondade e compaixão, dentro das suas limitações católicas. E, mesmo sem o saberem, conseguiram desvanecer a antiga obsessão de Estrupício pelo lança-chamas.
Hoje Estrupício é um jovem normal, bem educado, bem apessoado, brincalhão e gentil. Quando lhe falam no natal, assunto que ele desgosta mas que não consegue evitar, uma prenda apenas lhe vem à ideia: serra-eléctrica! O olhar gela-se-lhe por uma fracção de segundo mas depois sorri com os dentes todos, e é isso que encanta as pessoas.
10 comentários:
16 de dezembro de 2010 às 20:52
Hummmmmm
Não gosto do termo "normal"...
O estrupíco só se cura quando tiver o que sempre quis...
16 de dezembro de 2010 às 20:59
Que imagem tão bonita: "violados por um icebergue" :)
16 de dezembro de 2010 às 21:24
@Pink Poison: Suspeito que sim.
@Johnny: É enternecedor não é? :)
16 de dezembro de 2010 às 23:48
Sorte terá um dia Estrupício Júnior. Já se sabe, os pais tentam sempre realizar os seus sonhos através dos filhos.
17 de dezembro de 2010 às 00:03
Muitos Estrupícios se encontram, por causa pequena e tão fácil de solucionar.
Excelente post.
Põe-me a pensar...
17 de dezembro de 2010 às 08:32
@Luísa: Os sonhos dos filhos é que já serão outros.
@Desejo: É o que não falta por aí, são estrupícios, :)
22 de dezembro de 2010 às 13:02
Eu acho que a criança foi condenada à nascença, quando lhe deram o nome :)
De qualquer forma, é bom aprender a frustrar desde pequenino, ainda bem que os pais não lhe deram o lança-chamas:)
Boas festas matador!
23 de dezembro de 2010 às 10:48
Boas festas Tulipa
23 de dezembro de 2010 às 12:03
Ah ah ah
Abraço e... melhoras para o Estrupício
23 de dezembro de 2010 às 12:11
Ehehe obrigado Pierrot, abraço para ti.
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