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O Favor

| sexta-feira, 8 de janeiro de 2010 | |


Ela estava sentada na secretária em frente da sua. Bela como sempre, a viúvez não lhe fizera grande mossa. Parecia até mais enxuta. Quem olhasse com atenção diria que lhe tinham tirado um peso de cima; falava-se no escritório que o marido lhe batia, e que tinha amantes e mais um rol de outras indiscrições. Labregoísio queria acreditar nessa visão detractora do defunto, era a que melhor se encaixava na sua fantasia. Comparado com um marido brutamontes, Labregoísio assemelhava-se a uma pérola num monte de esterco. Mesmo assim não se sentia à vontade para dar o passo seguinte, ainda tinha bem presente a recusa que ela lhe dera quando era apenas solteira. Tivesse ele a desenvoltura dum Humphrey Bogart, a voz cava dum Robert Mitchum, e, de cigarro ao canto da boca, soltaria um «então linda, como é que vai isso?» e seria o suficiente para a arrebatar. Mas, da última vez que tentara fumar um cigarro, apenas para impressioná-la, foi acometido de um ataque de tosse tal, que passou o resto da tarde agarrado à bomba para a asma. Foi uma entre as muitas humilhações que viriam ao longo dos anos. No casamento dela por exemplo; passou toda a cerimónia a chorar, e no copo-de-água, embriagou-se ao ponto de ir disputar o ramo de flores com as restantes celibatárias.
A esperança, como já se sabe, é a última a morrer, e Labregoísio era um sujeito perseverante. E agora ali estava ela, livre outra vez, à espera que Labregoísio fosse o seu príncipe encantado, o bombeiro que apagaria o fogo da sua solidão. Labregoísio sonhava acordado com um sorriso estúpido estampado na cara, quando o insólito sucedeu. Ela piscara-lhe o olho discretamente. O coração acelerou-lhe contra as costelas. Teria visto bem? Estaria a alucinar? Não, era verdade, lá estava outra vez, e depois mais uma vez. «Deuses obrigado!» rejubilou; finalmente tinha chegado a sua hora, e por iniciativa dela nem mais. Era muita sorte ao mesmo tempo «Mas eu mereço, foram muitos anos à espera» reflectia Labregoísio orgulhoso: quem espera sempre alcança. E nisto ela levanta-se da sua secretária e dirige-se a Labregoísio que fazia figas atrás das costas «É agora, é agora». Aproxima a sua cara da de Labregoíso, leva a mão à pálpebra e suspira «Labregoísio, faça-me um favor, sopre-me  a vista, é que parece que entrou um cisco para o olho». «Obrigada».Tornou a sentar-se calmamente atrás da secretária sem lhe dar mais conversa. Labregoísio no entanto estava em êxtase, não cabia em si de contente e dava saltinhos irritantes na cadeira «Ah! É óbvio que ela me deseja, hoje mesmo vou convidá-la para jantar».
... Que sempre que o homem sonha, o mundo pula e avança...

6 comentários:

Lala Says:
10 de janeiro de 2010 às 01:33

Bonito. E engraçado! Embora no fundo tenha ficado com pena do Labregoísio!
Parabéns!

El Matador Says:
10 de janeiro de 2010 às 19:47

Obrigado Lala. O Labregoísio há-de aguentar, tenho a certeza.

Post Mortem Says:
11 de janeiro de 2010 às 18:07

the ever watchful eye

El Matador Says:
11 de janeiro de 2010 às 18:38

Pois...é isso.

Brown Eyes Says:
11 de janeiro de 2010 às 23:53

ahahahah Bem o homem avançou ou não? Já é altura. Interessante. Autêntica visão masculina.

El Matador Says:
12 de janeiro de 2010 às 00:49

O homem avançou e diz-se que continua a avançar;há pessoas assim, com um sentido teimoso de missão.