It's been a hard day's night
And I've been working like a dog
The Beatles
Acordou com o cheiro da chuva. Mais concretamente com o cheiro da terra molhada. A cabeça doí-lhe como se tivesse marrado numa bigorna. Um espirro de vodka estremeceu-lhe nas narinas e o sabor do álcool voltou-lhe à boca num enjoo matinal. Estava prestes a dar à luz uma ressaca monumental. Pelo aspecto molhado da sala deduziu que tivesse chovido a noite inteira. Desde que ela se fora que ganhara o hábito de dormir de janelas abertas, todo nu, na esperança vã que uma noite ela regressasse e se deitasse com ele na vasta cama que aumentava de tamanho todos os dias. Vestiu o roupão cor-de-rosa e de caminho para a cozinha agarrou na garrafa de vodka meio cheia. Ora aí está uma imagem positiva que os gurus da auto-ajuda nunca se lembraram de usar: um indivíduo acorda ressacado depois de uma noite perdida e mesmo assim consegue ver a garrafa de vodka meio-cheia.
Quando a má-disposição começou a tomar proporções montanhosas, tomou uma decisão radical: Bloody Mary. Deitou uma porção generosa de vodka num copo alto, juntou-lhe uns restos de tabasco fora de prazo, uma pitada de sal, sumo de tomate, pimenta, e, como não tinha molho inglês juntou-lhe mais vodka, que isto dos cocktails matinais o segredo está no improviso. Bebeu o composto de um só trago e pouco depois sentiu o sorrisinho da noite anterior aflorar-lhe de novo os lábios.
Agora sim, estava pronto para o trabalho. Acendeu um cigarro e voltou para a sala que também era o quarto e fazia as vezes de hall de entrada. Ligou a aparelhagem e pôs um cd do Coltrane; aos primeiros acordes soltou um passinho de dança.
Sentou-se em frente ao computador que ficara ligado da noite anterior e enterrou os pés nus no tapete árabe, única recordação duma viagem que tinham feito juntos, noutra vida. Na secretária, por debaixo da montanha de rascunhos, ainda guardava a carta que ela lhe deixara em cima da cama num envelope agora amarelo. A frase, por ser tão singela, ficou-lhe atarrachada na memória: Deixo-te o tapete, levo o cão.
Sacudiu a cabeça e tentou concentrar-se no trabalho que já estava mais que atrasado. Tinha ficado de escrever um livro para crianças, encomendado pela editora, mas todos os dias ruminava á volta do tema e não passava do título: Pai Natal ou Menino Jesus? – Eis a Questão!
Acendeu outro cigarro. Não conseguia conter a inspiração: era-lhe permeável. A dita atravessava-lhe o corpo como o sangue dominical por um cálice partido; como a chuva que lhe entrava pela janela. Os dedos passeavam pelo teclado mas o resultado era sempre o mesmo: reminiscências duma tristeza. Uma tristeza que se prolongava ao longo do dia. Um dia que demasiado cedo se fazia noite.
Para a Fábrica das Letras - O Cheiro da Chuva
24 comentários:
1 de outubro de 2010 às 21:48
Sim o desgosto... Acompanhado de substâncias que nos mudam o estado de espírito. gostei muito mas preferia o cão ao tapete.
Beijo e bom fim de semana
1 de outubro de 2010 às 21:55
Eu também preferia o cão, mas isto das partilhas já se sabe.
bom fim de semana.
1 de outubro de 2010 às 22:21
E já foste buscar o teu mimo ao meu blog?
1 de outubro de 2010 às 22:35
Não, mas agradeço-te já aqui. Eu não sou muito dado a prémios e selos, mas gostei da lembrança.
Já agora tenho que te dizer que não recebo actualizações do teu blog.
1 de outubro de 2010 às 23:27
Eu sei :( e o bloguer não me resolve o assunto... Estou danada.
2 de outubro de 2010 às 20:11
tudo o que tenho lido aqui, é de calibre elevado ;D, mas este texto meu amigo, está soberbo.
Adorei. Do melhor que tenho lido.
Beijo
2 de outubro de 2010 às 20:55
Obrigado Mel, vou tentar manter a calibragem :)
2 de outubro de 2010 às 23:00
gostava que o texto se prolongasse num grosso romance. queria ler mais, muito mais deste cheiro da chuva que me cheirou mais a cão molhado deitado num tapete árabe. Afinal, todos os abandonos cheiram a cão molhado, da chuva
2 de outubro de 2010 às 23:13
Por acaso quando o acabei, também me deu a impressão de que havia matéria para continuar. Não sei, se calhar é só impressão.
2 de outubro de 2010 às 23:31
As reminiscências da tristeza aparecem a toda a hora...
Gostei muito.
Improvisa e faz o tapete desaparecer ao som de Coltrane. Kiss
2 de outubro de 2010 às 23:40
Torná-lo num tapete voador :)
3 de outubro de 2010 às 00:49
Como queres que ele tenha ideias se o pões a viver neste caos?
:)
Fantástico, como sempre.
3 de outubro de 2010 às 02:03
Caramba! Habituei-me à tua escrita nua e crua, mas é inevitável senti-la tão cheia, tão intensa. Adorei! Os meus parabéns.
Fazes-me pensar em arrumar a trouxa e voltar para casa (isto é, deixar de escrever).
(Tenho uma curiosidade enorme: saber o que fazes profissionalmente - estou só a dizer por dizer, não procuro que me respondas.)
3 de outubro de 2010 às 09:30
@MZ: É do caos que surge a criação :) Obrigado.
@Blue: Obrigado pelo teu comentário Blue.
Não faças isso, deixar de escrever, quando muito devias era escrever mais.
Sou artista de circo, mais propriamente, Palhaço.
3 de outubro de 2010 às 17:08
Gostei...como sempre. Já agora porque é que ele não resolve escrever a história do dia em que o Menino jesus deu de caras com o Pai Natal... :)
3 de outubro de 2010 às 17:25
Um dia terrível para as estórias infantis.
6 de outubro de 2010 às 15:36
O humor e a ironia semeados pelo seu texto, deram-me indícios de que seria outro o desfecho. Surpreendeu-me(o que parece que é bom, nestas coisas da escrita), e agradou-me.
6 de outubro de 2010 às 17:05
Ainda bem Eduardina, a mim também me surpreendeu o que é sempre bom para quem escreve.
7 de outubro de 2010 às 17:50
Que história! Não há glória, felicidade, mas há uma existência contorcida entre álcool, lembranças e escritos.
Lá fora a chuva cai.
7 de outubro de 2010 às 18:56
Pois.
16 de outubro de 2010 às 11:47
Bem, com a banda sonora certa e este teu post toma proporções épicas!
Gosto de ler as tuas descrições de insanidade, friend, e essa ressaca quase me bateu, mesmo sem beber gole d'álcool.
Porta-te.
PS: gostei muito do novo template.
16 de outubro de 2010 às 13:18
Disseste bem, quando escrevo tenho que ter sempre uma boa banda sonora por trás.
16 de outubro de 2010 às 14:47
descobri este teu blog, meu caro, a partir da tua participação neste desafio da fábrica de letras, li o texto e gostei... vou dar uma olhadela geral ao teu espaço, coscuvilhar um pouco, se mo permitires ;)
eu também participei,
saudações otárias!
16 de outubro de 2010 às 19:39
Bem-vindo caro Otário. 'Tás à vontade para cuscar, faz de conta que estás em casa, a cerveja tá no frigorífico.
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