A festa ainda estava no seu estado embrionário mas os convivas encontravam-se já sentados à mesa. Uma mesa composta de outras mesas que formavam um círculo. Ninguém queria ficar de costas para ninguém, não por uma questão de educação, mais por instinto de sobrevivência. Miravam-se nos olhos constantemente e arreganhavam os dentes. Tiravam medidas, avaliavam-se. Havia quem salivasse.
As divergências sobre a ementa, que não se podiam considerar supérfluas, eram muitas; os convidados haviam decidido, por uma qualquer vicissitude da época, comerem-se uns aos outros. Assim mesmo, sem apelo nem agravo. Ora, uma empreitada deste nível nunca é aceite de ânimo leve, assim, do pé para a mão. Impunha-se organização. Estas coisas só se decidem através de uma forte sentido de entendimento e comunhão. Entretanto, se havia quem não se importasse de ser comido havia também aqueles que se recusavam veementemente a servir de repasto a qualquer um.
Os de estirpe mais nobre, por exemplo, não lhes bastava a carne do seu vizinho mal passada a sangrar no prato, não. Queriam-na servida por criados de libré. Por outro lado, a malta da rambóia, não se ensaiava nada em comer a nobreza entre dois pedaços de pão depois de devidamente esturricada no fogareiro. Eram dois estilos diferentes que se confrontavam. Anuíam, isso sim, em que era preciso era haver carne. E sangue. Disso não restavam quaisquer dúvidas. A incerteza residia precisamente no objecto dessa carne e desse sangue, que nenhuma das partes estava disposta a produzir.
A certa altura a argumentação puramente filosófica subiu de tom para o debate religioso: Quem deve comer o homem? E como em todas as manifestações de cariz religioso, lá estavam os sacerdotes, de pé, à espera duma conclusão. Abençoavam uns e outros na certeza porém, de que fosse qual fosse o desenlace, uma terça parte lhes caberia por direito divino.
Os magarefes, na sua eterna paciência, bocejavam aborrecimento perante tamanha polémica. Afiavam os cutelos com a desenvoltura típica do ofício, e como novidade, colocavam nos ouvidos tampões de silicone para abafar o ruído; que isto os homens quando lhes toca a morrer gritam mais que os porcos.
Para a Fábrica de Letras - tema livre
As divergências sobre a ementa, que não se podiam considerar supérfluas, eram muitas; os convidados haviam decidido, por uma qualquer vicissitude da época, comerem-se uns aos outros. Assim mesmo, sem apelo nem agravo. Ora, uma empreitada deste nível nunca é aceite de ânimo leve, assim, do pé para a mão. Impunha-se organização. Estas coisas só se decidem através de uma forte sentido de entendimento e comunhão. Entretanto, se havia quem não se importasse de ser comido havia também aqueles que se recusavam veementemente a servir de repasto a qualquer um.
Os de estirpe mais nobre, por exemplo, não lhes bastava a carne do seu vizinho mal passada a sangrar no prato, não. Queriam-na servida por criados de libré. Por outro lado, a malta da rambóia, não se ensaiava nada em comer a nobreza entre dois pedaços de pão depois de devidamente esturricada no fogareiro. Eram dois estilos diferentes que se confrontavam. Anuíam, isso sim, em que era preciso era haver carne. E sangue. Disso não restavam quaisquer dúvidas. A incerteza residia precisamente no objecto dessa carne e desse sangue, que nenhuma das partes estava disposta a produzir.
A certa altura a argumentação puramente filosófica subiu de tom para o debate religioso: Quem deve comer o homem? E como em todas as manifestações de cariz religioso, lá estavam os sacerdotes, de pé, à espera duma conclusão. Abençoavam uns e outros na certeza porém, de que fosse qual fosse o desenlace, uma terça parte lhes caberia por direito divino.
Os magarefes, na sua eterna paciência, bocejavam aborrecimento perante tamanha polémica. Afiavam os cutelos com a desenvoltura típica do ofício, e como novidade, colocavam nos ouvidos tampões de silicone para abafar o ruído; que isto os homens quando lhes toca a morrer gritam mais que os porcos.
Para a Fábrica de Letras - tema livre
25 comentários:
1 de setembro de 2010 às 22:09
essencial encontrarem quem saiba cortar bifes. cortar bifes é uma arte!!!!
1 de setembro de 2010 às 22:13
Interessante. Às vezes sinto isso quando vou dentro do autocarro.
1 de setembro de 2010 às 22:20
@brita: É realmente essencial.
@Lala:Sentes vontade de comer alguém?
:)
1 de setembro de 2010 às 22:32
O individualismo puro. A insensatez. A gula. O oportunismo.
1 de setembro de 2010 às 22:35
A vontade de consumir.
1 de setembro de 2010 às 23:43
Tétrico mas delicioso.
Gostei! É genial!
1 de setembro de 2010 às 23:46
Obrigado B.
2 de setembro de 2010 às 00:03
Espantoso este texto em que eu interpreto como sendo literalmente a nossa sociedade numa ânsia competiviva de se comerem uns aos outros e ver quem fica com o melhor pedaço.
Não importa a forma, basta apenas que o alvo vire as costas e zás! A faca aguçada da ganância e do oportunismo é cravada até ao fundo.
bj
2 de setembro de 2010 às 08:37
Que crítica genial, Matador! Acho que significa exatamente o que a MZ escreveu. Muito bom! Parabéns!!!
=*
2 de setembro de 2010 às 09:59
@MZ - Boa interpretação.
@Ane - Obrigado, mais uma vez.
2 de setembro de 2010 às 10:37
Isto é que eu chamo uma bela descrição da nossa Assembleia da República. Orgão máximo do nosso pais e representante do povo. hehehe
Brilhante como de costume, continuo à espera do texto mais fraquinho para poder fazer critica construtiva...;-)
2 de setembro de 2010 às 10:42
A tua boa vontade não tem tamanho, Joaninha.
2 de setembro de 2010 às 11:56
Comer ou ser comido, eis a questão.
A brincar a brincar, a sede de sangue é cada vez maior, e a vontade do homem está presa por um fio.
Como sempre as tuas alegorias são um espectaculo, porque escreve bem, porque tens um sentido de humor cortante e oportuno e eu gosto sempre muito de te ler.
Beijo
2 de setembro de 2010 às 12:03
Comer para não ser comido, ou nas palavras imortais dos Ena Pá 2000:
Quem não come passa fome.
Obrigado Mel
2 de setembro de 2010 às 17:55
Deixa-me mas é ver se a porta da sala do banquete ficou aberta para eu me escapulir antes que seja tarde...ufa!!!
2 de setembro de 2010 às 19:23
Foge enquanto tens pernas Luisa, eheheh
2 de setembro de 2010 às 21:00
Só alinhava nisso se "comerem-se" fosse entre aspas. Como não é, acho que é jantar para acabar mal.
Muito bom texto, mais uma vez.
2 de setembro de 2010 às 21:05
Ahahaha, boa Johhny, se fosse entre aspas alinhávamos todos e o título do post não seria o banquete.
3 de setembro de 2010 às 02:05
Um belo banquete temos aqui..hahahah!!!
Sandra
7 de setembro de 2010 às 22:46
sim... às vezes! tipo... Grrrrrrrrrr!
9 de setembro de 2010 às 16:16
Matador, muito bom como sempre. Era bom que este banquete não simbolizasse o que de pior nós temos, porque a suposta mesa simboliza a união e não o que nos conduz à desgraça.
Muito bom! kisses
9 de setembro de 2010 às 18:50
o que nos conduz à desgraça é muitas vezes o que nos une.
Obrigado Tulipa.
11 de setembro de 2010 às 17:17
Efectivamente, o Homem é o pior inimigo de si próprio e, na minha perspectiva, esta alegoria refere-se à nossa sociedade de consumo. Basta olharmos à nossa volta.Exemplos não faltam. Gostei muito. Parabéns.
22 de setembro de 2010 às 15:38
Um retrato da nossa sociedade. EWu não quero comer nem quero ser comida, prefiro ficar à parte dessa sociedade canibal. Beijinhos
23 de setembro de 2010 às 21:07
@Eduardina - É isso. Obrigado.
@Brown Eyes - Acabamos todos por fazer parte, mesmo que inconscientemente , alguns.
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