É como areia fininha que se escapa por entre os dedos. A vida. Escapa-se-lhe às mãos cheias por muito que cerre os punhos. Não. Reformula o pensamento: talvez escape precisamente porque cerra os punhos. E os dentes, também cerra os dentes. Tudo em si é encerrado.
Um dia o poeta acordou e viu que tinha a vida toda desarrumada. Os dias por cima das cadeiras, os meses debaixo da cama e largos anos amarfanhados de qualquer maneira num cesto de roupa suja. As pessoas chamavam-lhe poeta mas havia muitos anos que não rimava; não conseguia encontrar a musicalidade nas palavras que faziam eco umas com as outras. Ainda seria poeta? Pode ser-se poeta sem escrever uma simples quadra, um verso que seja?
Era um poeta do silêncio. E isso existe? Poetas mudos?
Tinha um amigo pintor que não pintava, o que para si era um consolo. Passavam muitas tardes juntos, sentados no sofá, a embebedarem-se. O amigo falava-lhe dos quadros que não tinha pintado, das cores vivas e quentes, cheias de paixão, que enchiam a sala de luz numa cascata multicolor. O poeta acendia cigarros e mimava aos saltos os poemas que não tinha escrito, que por serem duma forma maior de lirismo silencioso, emocionava ambos. Aos fins-de-semana juntava-se-lhes Anacleto, o músico, que era surdo e não tocava nada.
O que ele queria era agarrar a vida em todo o seu esplendor. Queria deixar de escrever lugares comuns como: a vida em todo o seu esplendor. Queria amar. Amar com as mãos e a boca e os dentes. Queria escrever sobre o amor. Queria escrever sobre o amor de pernas para o ar. Amor ao contrário lê-se Roma. Queria ir a Roma. Queria agarrá-la em Roma e em todo lado. Em todo o lado é onde fica o mundo. O mundo escapa-se-lhe como areia fininha por entre os dedos.
15 comentários:
23 de setembro de 2010 às 21:07
Tá tão lindo o teu texto (:
23 de setembro de 2010 às 21:27
Muito bom.
23 de setembro de 2010 às 21:40
E os tês partilham e guardam segredos muito bem guardados naquele lugar onde a massa cinzenta se comprime em ondas que o homem teima em chamar-lhe cérebro.
23 de setembro de 2010 às 21:54
@Missy Chatterton: Tá jeitosinho :)
@Johnny: Thanks Johnny
@Mary Jo: Exacto.
24 de setembro de 2010 às 14:56
"Talvez escape precisamente porque cerra os punhos. E os dentes, também cerra os dentes. Tudo em si é encerrado."
Talvez não, sem dúvida!
beijos
PS: Está lindo, és poeta e não sabes ;-)
24 de setembro de 2010 às 15:02
Tu não me digas isso mulher :)
25 de setembro de 2010 às 14:11
Lindo texto. Poeta do silêncio, acredito. Ninguém, ou muito poucos conhecem a luta interior do que é saber fazer algo, sentir algo e apenas uma caneta e uma folha, uma tela, um monitor... Em branco. cerramos os punhos mas esquecemo-nos que até a nossa pele tem poros... Nunca estamos cerrados, apenas iludidos.
Um beijo (vou seguir, adorei)
25 de setembro de 2010 às 23:25
Obrigado Pink e bem-vinda.
26 de setembro de 2010 às 08:49
Queria escrever sobre o amor. Queria escrever sobre o amor de pernas para o ar. Amor ao contrário lê-se Roma. Queria ir a Roma. Queria agarrá-la em Roma e em todo lado. Em todo o lado é onde fica o mundo. O mundo escapa-se-lhe como areia fininha por entre os dedos.
Perfeito!!!!! Parabéns, Matador! E sim, sem dúvida, tu és poeta! =)
Beijos,
Ane
26 de setembro de 2010 às 13:20
Obrigado Ane, tu estragas-me.
26 de setembro de 2010 às 18:59
perfeito :)
26 de setembro de 2010 às 19:11
Obrigado Peanut :)
27 de setembro de 2010 às 12:03
És um poeta, matador. Mesmo quando não rimas. não é preciso escrever, nem é preciso rimar para ser poeta. É só preciso olhar a vida como tu olhas. Kisses
27 de setembro de 2010 às 12:10
És poeta, és poeta, és poeta! E não sou só eu que o digo. :-)
beijos
27 de setembro de 2010 às 12:16
@Tulipa - Obrigado, incentivas-me.
@Joaninha - Eu sou é um fingidor :)
Enviar um comentário