O que fazer a um corpo quando não o reconhecemos ao espelho. Que espécie de prodígio é este? Uma possessão? Alguém acredita nisso? Pode-se viver parte da vida num invólucro ressequido, ressacado, ressentido e nem dar por isso? Quem és tu e porque estás em todo o meu redor? Pergunta o homem quando acorda num quarto de hotel, num corpo que não é o seu, ao lado duma mulher que não é sua. O meu corpo não tinha olheiras, nem este bigode nem a barba por desfazer. O meu corpo não estava cansado, nem tinha rugas, nem cabelos brancos salteados pelo crânio. A mulher abana a cabeça enquanto conta o dinheiro. Retoca o baton e sai, deixando-o sozinho a falar com o reflexo, como se representasse um monólogo para si próprio; uma encenação numa casa de espelhos onde uma só alma comprou bilhete. Alguém viu o meu corpo seco, ligeirinho, limpo e vistoso? Grita o homem para o barman, com os olhos raiados de sangue. O barman enche-lhe o copo do seu veneno preferido e abana a cabeça. Ninguém tinha visto tal corpo.
Ah! Deve ser isto a tal de solidão que toda a gente falava. Este vaguear incessante à procura de algo. Um indivíduo acorda e de repente está perdido e ninguém o reconhece; condenado a procurar algo que já não pode encontrar - o seu rasto. Pelo menos é o que dizem os físicos: não se pode viajar no tempo para trás, para o passado, por mor dos paradoxos.
15 comentários:
13 de outubro de 2010 às 20:40
Como eu costumo dizer, a solidão é algo que nos corta duarnte a noite para nós nos colarmos de manha e fingirmos que está tudo bem.
13 de outubro de 2010 às 20:43
E dizes bem.
13 de outubro de 2010 às 21:01
Pode-se, pode-se viver grande parte da vida a desempenhar um papel que não é o nosso e depois voltar; ou era o nosso e depois mudar. kiss
13 de outubro de 2010 às 21:23
Estamos esclarecidos então.
13 de outubro de 2010 às 22:05
Para resolver esta situação, não há como o esquecimento. Bem podiam vendê-lo em unidoses na farmácia!
13 de outubro de 2010 às 22:15
Já vendem essas unidoses mas não nas farmácias, Luísa.
Vendem nos bares: chamam-se shots.
13 de outubro de 2010 às 22:44
Shots, o engano dos jovens.
Lamentável.
:) desejo
14 de outubro de 2010 às 09:43
"Um indivíduo acorda e de repente está perdido e ninguém o reconhece; condenado a procurar algo que já não pode encontrar - o seu rasto"
Perfeito!
E olha que se perde tanto tempo nessa busca esteril...
beijinho
14 de outubro de 2010 às 13:32
sabes? estamos sempre a tempo de mudar tudo. o passado passou. não nos arrependamos do que foi feito, mas se o estivermos a "pagar" agora, pelo menos que tenhamos aprendido algo. se aprendemos algo, então valeu a pena estilhaçar no passado. um corpo que não é o seu assomou-se de si. ainda bem que percebeu isso. está a tempo de mudar.
14 de outubro de 2010 às 14:07
@Desejo:Às vezes não é por engano :)
@Mel: Em busca do tempo perdido, como dizia o outro.
@Lala: Sô Dona Lala, seja bem aparecida. E que sábias palavras as suas.
14 de outubro de 2010 às 23:27
desde que a minha mãe foi comprar tabaco há 28 anos, tenho aprendido algumas coisinhas.
*
ando "feita louca". mas é um estado de loucura temporária.
19 de outubro de 2010 às 18:43
a vida é uma constante, para o bem e para o mal. nesses dois opostos que se interligam, há que construir uma estrada. e nessa estrada somos um carro no breu, há que ter os faróis acessos. há quem nem consiga chegar a meio e já vai com os faróis partidos. outros têm-nos cagados pelos pássaros.outros ficam sem gasolina e têm de pedir boleia.
é mais ou menos assim nesta minha explicação um tanta atabalhoada.
19 de outubro de 2010 às 18:52
É isso sim, mais ou menos. :)
22 de outubro de 2010 às 12:20
Lindo...Eu ia comentar, gostava de comentar, mas é melhor não...
beijos
22 de outubro de 2010 às 14:22
Acho que já comentaste ó Joaninha.
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