Abrenúncio gostava de ir à mercearia. O facto de as compras serem mais caras que nos outros sítios era compensado por um ambiente único que só na mercearia encontrava. Conhecia algumas na cidade, cada vez mais escassas, e tinha a certeza que em cada uma delas havia um mundo de personagens únicas retumbantes nas suas idiossincrasias. Cada mercearia é uma rede social. Todos os clientes sabem da vida uns dos outros e daqueles que não se conhece, fica-se a saber através dos amigos dos amigos. Antes de ser um espaço de comércio é um sítio de partilha: de conhecimentos da vida alheia, das notícias do bairro, das viagens organizadas pela junta de freguesia, de mezinhas várias, enfim...
Abrenúncio gostava da mercearia tanto quanto detestava supermercados grandes - perdia-se quase sempre, e nunca sabia onde estavam as coisas - ali não, na mercearia era tudo perto.
Na sua mercearia, gostava particularmente da senhora de cabelo ralo, pintado de cor-de-laranja que andava sempre de pantufas. Quando chegava a sua vez na caixa fazia questão de agarrar num produto ao calhas e afirmar em voz alta, como quem não quer a coisa, Este shampoo é muito bom! Eu sei porque a minha filha é Química e ela disse-me que este era um bom shampoo. Noutros dias era a manteiga. Noutros ainda o detergente da loiça, o amaciador da roupa, o creme para as mãos, a pasta de dentes, e tudo quanto possuísse um ph. Nunca se coibia de aconselhar outros clientes, ou não fossem estes meros vitelos no matadouro que era o marketing agressivo dos mass-media. Esse não vizinho, esse não presta, leve antes este que a minha filha que é Química diz que é muito bom. E Abrenúncio levava, para ele era tudo igual, não lhe fazia a mínima diferença; o que ele gostava era de ver a mulher com o peito cheio de orgulho por ter uma filha que, não era nem mais nem menos do que: Química.
A dona da mercearia abanava a cabeça numa concordância pachorrenta, diz que sim, diz que sim. Ela que só queria vender, não lhe interessava quem fazia a publicidade: se as televisões, se a mãe da Química. Registava as discussões entre clientes com malabarismos diplomáticos que a permitiam ficar sempre de acordo com as partes envolvidas, como convinha a uma dona de mercearia. Se as indicações da filha Química iam de encontro às do filho doutor daqueloutra cliente, a dona da mercearia encontrava facilmente um ponto de intersecção comum às duas, qual sabedoria salomónica.
Do seu filho não falava. Era tabu e todos os clientes sabiam-no. Era como se não existisse, ainda que tivesse pedido clemência por ele, ao doutor juiz, no dia da sentença. O marido, que orientava o negócio, também nunca dava parte de fraco quando começavam os concursos para ver quem tinha o filho mais bem sucedido. Nem pestanejava.
Ainda não tinha sido há muito tempo que o filho se levantara a meio da noite, e, por qualquer razão, com uma faca de cozinha, atacou primeiro o pai e depois a mãe, desferindo golpes aleatórios que acertaram ora num ora noutro. Como estavam às escuras e não viam o agressor, gritaram por socorro e chamaram pelo filho, que só não veio porque já lá estava.
Sempre que ia às compras Abrenúncio não conseguia deixar de notar na enorme cicatriz que a mulher trazia ao pescoço desde a lúgubre noite. Com o homem passava-se o mesmo. Os cortes agora sarados notavam-se-lhe na cara e nos braços. Cortes profundos que doíam menos à superfície que no seu âmago. Marcas de Caim que ficam para sempre e que não se podem remover. A resignação só era comparável com o que tinha sido a surpresa. Até tu meu filho! - diria Júlio César. Até tu minha filha que és Química! – diria a senhora de cabelo cor-de-laranja.
11 comentários:
7 de outubro de 2010 às 09:48
... isto assim ´´e uma merdinha, uma pessoa vir praqui sempre com a mesma conversa e assim, mas nao posso dizer mais que amo o que tu escreves. Es certamente do melhor que ha a escrever ficçao nestes meandros da blogosfera. E escusas de te babar, porque gosto pouco de elogiar tao abertamente.
E isso da mercearia, o Abrenuncio tem razao. Aqui na aldeia onde trabalho, vou todas as manhas comprar o pao e beber o cafezinho a uma, e todos os dias ha motivos de interesse eheheh, disputas amorosas, zangas familiares, trocos errados, e clarooo o elogio dos herdeiros.
7 de outubro de 2010 às 09:56
Ahahaha, escorrem fios pelos cantos da boca.
As mercearias são o facebook do povo. Ou será o contrário?
7 de outubro de 2010 às 21:46
boa!
7 de outubro de 2010 às 22:35
Olha, já li e reli e não sei o que comentar...mas já disseste tudo. Mesmo assim, tenho saudades das mercearias...
O abrenúncio é um turista deste mundo!
7 de outubro de 2010 às 22:38
Um turista acidental e acidentado :)
8 de outubro de 2010 às 17:19
Gostei muito do novo visual! :)
8 de outubro de 2010 às 17:26
Reparaste no pormenor do cutelo lá embaixo? Foi o que me convenceu.
8 de outubro de 2010 às 17:29
reparei. um bocado agressivo, mas deve ser essa a ideia :)
8 de outubro de 2010 às 17:34
Ehehehe(riso maléfico).
9 de outubro de 2010 às 18:48
Porque nem nos locais onde pensamos ter paz, estamos seguros... A segurança somos nós que a temos e tornamos esta ou aquela situação segura, ganha e completa.
A mercearia simboliza, para mim, os avós, o antigo, a simpatia, a cicatriz, a marca da amargura da vida que até na paz de um colo de avó pode penetrar.
Adorei
9 de outubro de 2010 às 19:07
E também um ponto de encontro.
Enviar um comentário