Não era a inacção em si que o aborrecia. Com a indolência podia ele compactuar. Acordar tarde, passar o dia de boxers e pantufas; ler os livros abandonados na mesa de cabeceira, beber a cerveja que se amontoava no frederico à espera de um qualquer jogo de futebol, não era algo que lhe causasse desprazer. Era a lesão que o tirava do sério. Um passo em falso, um tropeção, um esforço mal medido e a lesão que espreitava por detrás de um qualquer manual de fisioterapia saltou para a realidade e instalou-se-lhe no corpo pouco habituado a estas modernices. A lesão provocava dor. Uma dor circular, estúpida. Uma dor que ia e vinha e lhe rondava a lesão em movimentos concêntricos como os de um tubarão. Quando pensava já estar melhor, vestia-se, agarrava nas chaves e estando prestes a sair, eis que a dor saltava por detrás da porta e atacava-o como um meliante furtivo na calada da noite. Nessas alturas sentava-se e ligava a televisão, mas a dor agudizava-se de tal forma que logo desligava o aparelho. Era uma dor que não se compadecia com a programação nacional.
A ansiedade era o pior de tudo. Estar à espera que lhe doesse era mais desagradável que quando lhe doía mesmo. A pessoa a quem a sua morte é anunciada sofre muito mais que o incauto, que ao sair de casa apanha com um piano de cauda em cima. A morte imediata acaba por ser mais musical que o longo silêncio da espera.
Sentia-se encurralado. Como um animal preso numa gaiola. Nota mental: Nunca mais ir ao jardim zoológico.
Não conseguiu ler o jornal. As notícias do mundo causaram-lhe, mais que dor, tristeza. Entreteve-se então a catalogar os discos da colecção de jazz e descobriu que os analgésicos misturados com cerveja tornavam os solos do Dizzy Gillespie, numa palavra: flutuantes. Ruminou no porquê de os comprimidos para a dor chamarem-se analgésicos e não oralgésicos, uma vez que são tomados pela boca. E nisto a dor atacou-o traiçoeira. Uma pontada só, para lhe lembrar que ainda existia, não fosse ele esquecer-se.
Foi para a varanda e acendeu um cigarro. Reparou no vizinho do andar de baixo, que se atarefava todo a prender à sacada, uma bandeira vermelha e verde com um manguito amarelo ao centro.
Este é que a sabe toda – pensou.
10 comentários:
12 de outubro de 2010 às 22:14
Ah o frederico! Adoro a expressão. Uso-a com alguma frequência. Mas tenho uma reclamação a apresentar. Com esta nova cor de texto, eu é que vou ficar com lesões oculares...Se fica giro? Pois fica. Mas a mim custa-me mais a ler. Parece que estou a levar com aqueles alfinetes do vudu, aí do canto superior direito :)
12 de outubro de 2010 às 22:40
A morte anunciada temos todos, resta aproveitarmos todos os momentos e aprender a enganar a dor.
12 de outubro de 2010 às 23:00
cada vez que aqui passo, há maravilhas para ler.
espero quenão leves a mal uma correcção: deve escrever-se "entreteve-se" e não "entreteu-se"
12 de outubro de 2010 às 23:10
@Luísa: Pois é, mas a cor das letras veio logo configurada por isso não dá para mudar :(
@Tulipa: Ou a contorná-la.
@Peanut:Maravilhosas gaffes queres tu dizer. Ehehe, tava sublinhado a vermelho e tudo, já tá rectificado. Obrigado pelo reparo.
13 de outubro de 2010 às 01:10
Depressão?
13 de outubro de 2010 às 07:41
Ahaha, Nem por isso, Pink. Quer dizer, tem dias.
13 de outubro de 2010 às 12:50
Ontem escrevi um comentário, que parece-me não entrou.
Penso que a definiução que deste para "lesão" est´muito bem, porque pensando nas pequenas dores físicas é isso mesmo que sinto: dor circular, movimentos concêntricos... Mas a lesão psicológica é mais forte, aquela em que tu dizes que "a pessoa a quem a morte é anunciada sofre mais...". E o anúncio dessa morte é anunciada por nós próprios.
desejo
13 de outubro de 2010 às 13:36
O comentário de ontem não chegou aqui efectivamente, Desejo.
Concordo com o que dizes no final deste comentário.
13 de outubro de 2010 às 15:14
Se calhar estamos todos um bocadinho lesionados, em modo espera. Amei a bandeira com o manguito, e depois deste texto jamais uma aspirina sera um analgesico.
Beijo
13 de outubro de 2010 às 18:18
Nascemos lesionados, por isso há o Fado.
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