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O Silêncio dos Omnipotentes (2ª parte)

| segunda-feira, 1 de março de 2010 | |
“...Odeio tudo quanto seja sagrado, tudo o que cheire a incenso e a louvores cantados. Odeio o intocável e o sacrossanto; a falsa beatitude e a inefável hipocrisia.
Espetam-nos com esta moral desde pequeninos, a moral deles, e crescemos com esta sensação de sermos culpados de alguma coisa, como se tivéssemos contraído uma dívida a qual nunca iremos conseguir pagar e por isso estamos sempre em falta perante o seu julgamento, nesta vida e mais além...”
Um conto e quinhentos foi quanto lhe custara, ao sétimo dia, encomendar a alma da sua companheira que se tinha ido com o mal maior. A moeda é antiga, a história já não é nova.
Romualdo ruminava nestas considerações quando lhe pareceu ouvir um nome familiar, vindo de muito lá ao fundo. Quando saiu do estupor em que se encontrava já não conseguiu agarrar com os ouvidos o nome dela. Tinha passado o momento. O nome dela passara camuflado entre a graça de tantos outros infelizes de tal forma que surgiu e desapareceu como num suspiro; menos que isso, um piscar de olhos.
“É isto? Já está?” - Indignou-se. Se ali estava, se fizera aquele esforço, foi porque vozes vindas de todo o lado lhe ceceavam que era assim que tinha de ser, que era assim que era decente, que era o que ela teria querido...“Mas que porra esta!” de repente toda a gente era perita em descodificar a vontade dos defuntos.
Sentiu-se ultrajado até ao âmago; era como se lhe tivessem cuspido em cima da sua humildade, da sua decência pobre. Levantou-se e num gesto raivoso afastou a cestinha das esmolas que lhe forçavam junto ao nariz: “Ele que venda o ouro que tem ao pescoço” resmungou Romualdo e saiu espaventado.
No altar, impávido e sereno, o Deus menino, tornado criança, tornado homem, tornado mártir, tornado Deus, pontificava a toda aquela tragédia com o ar triste de sempre. O seu silêncio era ensurdecedor, a sua ausência milenar. Assistia mudo e quedo à desorientação dos seus filhos; à sua auto-destruição; ao seu egoísmo pérfido; aos eternos trinta dinheiros trocados todos os dias em Seu Nome. À sua volta, os querubins tentavam cantar-lhe loas, mas não cantavam nada porque eram de pedra.
Um dia voltará! - dizem eles – para apascentar de novo o seu rebanho.
Ainda não foi ontem, e hoje tudo indica não ser a véspera desse dia.

Para a Fábrica de Letras -Silêncio

22 comentários:

Johnny Says:
1 de março de 2010 às 23:34

A história de um ateu, feito ao sétimo dia.

Alguns não precisam de esperar pelos sete dias para ver que "porra. é isto?"

Texto espectacular.

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 00:00

Obrigado Johnny. Tens razão, alguns levam mais tempo que outros, e outros talvez para sua sorte nem passam por essa experiência.

Lala Says:
2 de março de 2010 às 00:01

Mais uma vez deste-me a ler aquilo a que tão bem me tens habituado.

A descrição perfeita de uma sociedade (ou parte dela) que vive agarrada a falsos valores. Morreu. Está morto. "Que venda o ouro que tem ao pescoço". Não é frieza, acredita! Adorei!!

Beijinhos**

Nota: este Romualdo surpreende-me de cada vez que o "encontro"!

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 00:09

Obrigado Lala, este Romualdo é um habitué cá da casa, às vezes desaparece por uns tempos mas acaba sempre por voltar.

Eva Gonçalves Says:
2 de março de 2010 às 00:14

Obrigada por chamares a atenção para o facto de já cá estar!:)Uau... impressionante como sentimos a revolta deste homem... aquela raiva de incompreensão pelo que acontecera à companheira..o que lhe acontecera... aquele renúncia ao conforto da religião e dor que se manifesta no enturpecimento primeiro e depois na descrença...gostei muito, apeteceu-me pegar-lhe pela mão e consolá-lo, não com a minha fé... mas com a verdade... e partilhar o silêncio. Não sei se passaste pela experiência, mas a descrição está perfeita. Beijinhos

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 01:02

Fico contente que tenhas gostado Eva.
De certa forma já partilhaste o silêncio com o Romualdo, na 1ª parte.

Sandra Says:
2 de março de 2010 às 01:14

Acho que postei no debaixo.
De uma olhadinha.
Sandra

Su m Says:
2 de março de 2010 às 09:56

"O seu silêncio era ensurdecedor"
E por vezes é só isto! A incapacidade de o aceitarmos e lidarmos com o silêncio.

Gostei muito da crueza da descrição, porque a vida e a morte são mesmo assim: directas e crueis e na maioria das vezes só nos resta mesmo... o silêncio

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 10:05

Obrigado Su pelo comentário.

Brown Eyes Says:
2 de março de 2010 às 14:20

Como também odeio hipocrisia, detesto o barulho ensurdecedor que ela faz, este silêncio deleitou-me. Beijinho

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 14:47

Ainda bem que gostaste Brown.

Ginger Says:
2 de março de 2010 às 14:51

Nem mais!

Muito bom, muito caustico.

Este assunto daria pano para mangas... ;)

P

El Matador Says:
2 de março de 2010 às 15:02

Para as mangas, para as calças, para a vestimenta completa.

Teresa Diniz Says:
2 de março de 2010 às 23:45

O Silêncio de Deus. Dava para muito comentarmos por aqui.

El Matador Says:
3 de março de 2010 às 00:09

Oh sim, eram longos momentos em que não haveria silêncio.

El Matador Says:
3 de março de 2010 às 16:33

Meldevespas, peço imensa desculpa mas apaguei o teu comentário por engano, de qualquer maneira agradeço-te, e sim como já se disse, dava pano para mangas.

Helga Piçarra Says:
3 de março de 2010 às 22:28

Não gosto de nenhum tipo de hipocrisia, sim, porque há muitos tipos de hipocrisia, mas este... este confesso, que é o que mais abomino. E com ele o cesto das esmolas! Um texto brutal, El Matador. Superou em tudo a 1ª parte.

Beijocas :)

El Matador Says:
3 de março de 2010 às 22:54

Obrigado Helga.

Catsone Says:
8 de março de 2010 às 22:19

Entras a matar ;)
Muito fixe.
Abraço

El Matador Says:
8 de março de 2010 às 22:25

Obrigado Catsone.
Abraço

mz Says:
9 de março de 2010 às 16:38

Agora, o silêncio tem voz nesta
2ª parte.
E o siLêncio vem acompanhado com a moral religiosa que nos acompanha desde que nos é imposta. Crescemos e podemos mudar. Morremos e continuam a impor-nos... continuam a decidir por nós. Passam os anos e já invisíveis como o teu "Unicórnio Cor de Rosa" já sem corpo...continuam a decidir por nós...
Lembro-me do Romualdo na véspera de Natal...
Lembro-me dele em siLêncio com o seu copo de whisky a fazer um brinde com Jesus, salvo erro.

Eu gosto do Romualdo...
muito bom!
bjs

El Matador Says:
9 de março de 2010 às 16:59

Obrigado MZ, e o Romualdo manda agradecer também.