Abrenúncio entrou na sala dos contabilistas enfurecidos sem se fazer anunciar. Planta-se no meio da repartição sem que ninguém dê pela sua presença. Os contabilistas matraqueiam, com os dedos já em sangue, as teclas das calculadoras e dos computadores; e gritam alto com as máquinas como quem fala com uma planta. As plantas no entanto crescem mais bonitas se falarmos com elas, já os números não. São obtusos e teimosos, e, quanto mais os contabilistas se enfurecem mais os números se mostram desagradáveis, recusando-se mesmo a mudarem de cor. A matemática é calculista e infalível e não é com gritaria que a levam, toda a gente sabe disso.
Os contabilistas enfurecidos são pessoas rancorosas e nem olham para Abrenúncio quando este se senta numa cadeira ao lado da fotocopiadora.
A guerra entre os contabilistas enfurecidos e os números rebeldes é antiga, já não vem de hoje. Começou quando a certa altura os números em revolta se recusaram a multiplicar. Depois fizeram greve da fome e, cada vez mais magros, deixaram também de somar. É por isso que hoje em dia só sabemos fazer contas de subtrair. Subtraímos aqui e ali e às vezes somos subtraídos também.
Na presente conjuntura, as contas de somar e de multiplicar deram lugar a uma nova operação: as contas de filosofar. Contas que se fazem, tendo como base uma aritmética filosófica que se traduz em perguntas como: e se...? e se amanhã...? ou ainda que hei-de eu fazer se...?
É com questões deste tipo que um povo filosófico-matemático-poeta constrói uma extensa ponte alicerçada de palavras. Palavras gordas e exuberantes, como esperança, que aguentem com o peso de uma debandada geral. O último a sair do país apaga a luz graceja um velhinho de bengala que se vê à rasca para aguentar a passada. Do outro lado está o deserto, a aridez. E assim é que tem que ser, pensa Abrenúncio: se tivermos que ser pobres terá que ser numa geografia desoladora. A pobreza dá-se mal entre os prédios altos e os carros de luxo e os comboios rápidos. Há uma paisagem típica para cada estado de espírito, e no nosso caso, o deserto é a que melhor se adequa.
Abrenúncio segura um envelope fechado. Um envelope branco e frio, pesado como só os envelopes brancos e frios sabem ser. Até os envelopes podem pesar uma tonelada quando se está angustiado. Os contabilistas enfurecidos ainda não deram pela sua presença e por isso Abrenúncio espera. Serão boas notícias? Serão más? Os envelopes fechados da burocracia são como o gato do senhor Schrödinger, enquanto não forem abertos, teoricamente são portadores de boas e más notícias simultaneamente. Enquanto não for aberto, o envelope não revelará a sua verdadeira e definitiva natureza. Entretanto ninguém parece preocupado; os contabilistas enfurecidos continuam com os dedos em sangue; a sala continua cinzenta e baixinha, sem música, sem poesia, sem plantas. E Abrenúncio continua sentado a um canto, à espera, embrutecido com a estranheza destas coisas.
13 comentários:
12 de novembro de 2010 às 14:10
Sou contra experiências com animais! :) kiss
12 de novembro de 2010 às 14:45
???
12 de novembro de 2010 às 23:50
Um texto metafórico com muita inteligência, sabedoria e realidade, que vivemos.
Abrenúncio somos todos os que esperamos uma vida inteira para que os números da terra deixem de ser pisados pelos dedos que batem as teclas, cansadas. Pegue-se no lápis, faça-se tracejados, rectas,curvas, desertos. E Abrenúncio abrirá o envelope branco: da vida
13 de novembro de 2010 às 13:38
Bem visto.
13 de novembro de 2010 às 15:58
Talvez o envelope do Abrenúncio contenha algumas letras... ou será só mesmo uma questão de números?
14 de novembro de 2010 às 13:52
É uma questão de números, de letras, de tempo que não temos para perder. É uma questão de filosofia, poesia e metáfora.
Brincando inteligentemente com a metáfora dos tempos que atravessamos, vi-me ali ao lado de Abrenúncio - sempre quis conhecê-lo, se soubesse que era ele ter-lhe-ia pedido um autógrafo... mas adiante.
É com as metáforas de um Matador que em dias menos bons vou matando a minha dor... aquela que vem da vontade de subir ao alto e gritar "Já chega!". É nestas páginas virtuais de letras arrancadas à força (dos acontecimentos) e na esperança de encontrar o elefante cor-de-rosa que me encontro com a realidade relatada ao mais alto nível... e por me presentearem com as vossas histórias de cavaleiros errantes de uma vida e de vidas distintas que vos homenageio lá... a sopa preparou um pequeno mais riquíssimo banquete e tem uma colherzinha para cada um ;)!
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Ah e podem levar o El convosco, ele merece um colher... merece sim! ;))
14 de novembro de 2010 às 18:36
@Luísa:Não se sabe Luísa, é o problema dos envelopes fechados em salas de contabilistas enfurecidos.
@Lala: O teu comentário é quase um post.
Aproveito para te agradecer a lembrança que me deixaste no teu blog mas tenho que te dizer que o verdadeiro prémio são as tuas visitas e os comentários que aqui deixas.
Obrigado.
15 de novembro de 2010 às 11:49
uma boa solução era
banir a matemática...
15 de novembro de 2010 às 11:56
:) Olha que não deves ser o único a pensar assim.
17 de novembro de 2010 às 12:04
Gosto tanto. Sinto que me repito cada vez que comento o que escreves, mas não me ocorre dizer-te mais.
És bom pá!
17 de novembro de 2010 às 12:23
Repete-te à vontade Peanut, eu não me importo. :)
Obrigado.
28 de novembro de 2010 às 12:03
MAs tu tens uma imaginação fantástica!
Nessas repartições, do balcão para dentro, nós seremos sempre números e ainda que eles se enganem, nós teremos de pagar sempre!
OS envelopes por vezes aconselham-nos a termos um plano B para a nossa vida. E convém que não seja num deserto...
28 de novembro de 2010 às 17:23
Hoje em dia temos que ter é um plano C, o plano B também já se foi ao ar.
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