Quando bateu a meia noite o senhor Honório ergueu o copo de whisky e com a voz entaramelada brindou: «À tua puto,... Mais um aninho hein? Se soubesses o que se faz por aqui em teu nome, deixavas de nascer todos os anos». Emborcou o copo e como se lhe faltasse qualquer coisa voltou a enchê-lo. O senhor Honório na sua idade avançada aprendeu a desgostar o Natal. Sentado na poltrona em frente da televisão assistia a todo aquele espectáculo triste de ignomínia e publicidade. Acendia uma vela, que colocava à janela para alumiar o caminho das almas, e bebia whisky até desmaiar. A alma que ele queria encaminhar até junto de si era a da sua mulher que tinha morrido no Natal. Ele, que era um anarquista dos antigos, nem sequer acreditava em almas, nem em milagres nem no menino Jesus, mas o peso da solidão tornara-se ao longo dos anos numa saudade impossível de carregar. Sentia saudades da sua companheira e das noites de Natal passadas com ela. As recordações mescladas com a dor que sentia nos ossos traziam ao de cima o seu mau feitio e logo se punha a gritar impropérios contra um deus invisível: «P'RA QUÊ QUE FOSTE FAZER O NATAL NO INVERNO?» Dizia coisas destas e os olhos enchiam-se-lhe lágrimas, «Ai, ai» choramingava. Sentia saudades de si próprio, da sua força e juventude. Bebeu mais um copo e voltou a dialogar consigo próprio: «Já não sou ninguém, sou farrapo...um farrapo OUVISTE?» Voltaram-lhe as memórias da mulher, de como ela o acordava sempre com mimos na manhã do dia 25, e foi embalado nessas recordações de tempos felizes que se entregou a Morfeu. Morfeu, apiedou-se da tristeza engelhada do velho e na manhã seguinte já não o devolveu ao século.
Para a Fábrica de Letras - Natal
Para a Fábrica de Letras - Natal
22 comentários:
3 de dezembro de 2009 às 00:50
Muito bonito este texto. Parabéns.
3 de dezembro de 2009 às 01:30
Obrigado Eva.
3 de dezembro de 2009 às 16:26
Este teu texto, bem traçado, ilustra tudo aquilo que penso dos Natais das pessoas já com uma certa idade: tristeza,amargura e desespero.
3 de dezembro de 2009 às 17:48
gostei da ideia de deuses compadecidos. natalícia, de uma certa forma.
3 de dezembro de 2009 às 17:58
@Brown Eyes - Das pessoas com uma certa idade e não só.
@Cal... - Os deuses gregos são uns porreiros.
3 de dezembro de 2009 às 19:05
Serve para pensar.
3 de dezembro de 2009 às 19:14
Pois
3 de dezembro de 2009 às 21:35
Muito bom. Simples e directo.
3 de dezembro de 2009 às 21:51
Obrigado Catsone.
4 de dezembro de 2009 às 00:10
O Natal traz sempre alguma melancolia, quando não amargura.
Gostei do texto.
4 de dezembro de 2009 às 08:32
É verdade.
4 de dezembro de 2009 às 15:40
Pode ser a nossa própria história, um dia.
Muito bom. ;)
4 de dezembro de 2009 às 17:22
Agora acertaste.
5 de dezembro de 2009 às 01:40
Degustar o Natal;
uma poltrona,
uma vela na janela,
vários copos de Whisky,
a saudade,
a solidão,
a morte... numa noite de aniversário em que um anarquista lúcido não se esqueceu de brindar e falar com Jesus!
Muito bom!
bjo
6 de dezembro de 2009 às 15:37
Tão bonito, e tão duro. Não sei se é da idade, se é do Natal, se é da puta da vida, mas é engraçado, o facto de mesmo os mais empedrenidos anarquistas, os mais ferrenhos ateus, em alguma ocasião da sua vida arranjam maneira cde culpar Deus por uma qualquer falta. Dá que pensar.
Beijinho
6 de dezembro de 2009 às 17:16
@MZ - Um abraço.
@meldevespas - anarquistas graças a deus.
9 de dezembro de 2009 às 16:43
Será que este foi o dia do teu aniversário? Olha, se foi, muitos parabéns...ehehe...
9 de dezembro de 2009 às 16:50
Não foi o dia do meu aniversário mas obrigado na mesma, :):)
15 de dezembro de 2009 às 20:02
Tás pior do que eu para fazer posts, ó pequeno...
15 de dezembro de 2009 às 20:25
Mesmo agora fiz um. ehehe grande timing.
22 de dezembro de 2009 às 23:49
Lindo!Um texto carregado de sentimentos...
23 de dezembro de 2009 às 04:32
obrigado.
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