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#256

| sexta-feira, 2 de setembro de 2011 | |
Gervásio, o Cruel, mastigava furioso um naco de carne em sangue, o maior da travessa, porque era o chefe. Levava a comida à boca com as mãos e limpava-se com as costas das mesmas, por isso a gordura espalhava-se-lhe pela barba comprida e escorria-lhe dos pulsos. Gervásio, o cruel, era o chefe, o líder da tribo, e, por isso tudo lhe era permitido, desde o comer com as mãos ao soltar flatulências sonoras em pleno banquete. Quando isso acontecia, os convivas quedavam-se num silêncio completo, atemorizados só de pensar na ira anunciada de Gervásio, o cruel. Este no entanto começava por exibir um sorrisinho cínico que nascia no canto direito da bocarra e alastrava-se como um tremor de terra por toda a cara até se transformar numa ribombante gargalhada. Os bobos e outros saltimbancos, mais atentos às luas do líder, largavam aos saltos e pinotes cantando em falsete e batendo em latas. Era o sinal de que tudo estava bem, que a situação não era incómoda nem de terror, antes de alegria e celebração, então toda a corte largava numa saudável salva de palmas, o que muito agradava a Gervásio, o Cruel. A interpretação dos arlequins podia salvar vidas, ou acabar com elas. Um sorriso mal colocado, ou a falta dele logo a seguir a uma anedota sem piada do líder podia ser o suficiente para um indivíduo se auto-sentenciar à morte.
Gervásio, o Cruel, não era o mais forte, nem o mais inteligente, nem sequer o mais hábil membro da tribo, era sim o mais Cruel, e por isso se tornara chefe, e por isso era temido.
Um dia, um caixeiro-viajante de outro reino, ao jantar na corte com Gervásio, o Cruel, reparou que este comia com as mãos. Então lembrou-se como gesto de cortesia e de apreço pelo anfitrião oferecer-lhe um conjunto de talheres de prata.
- Para que serve isto? – Inquiriu curioso Gervásio, o Cruel.
- É para comer majestade! – E como se o outro apresentasse um ar de ignorância bovina, apressou-se a demonstrar-lhe com a faca e o garfo cortando-lhe um perfeito filete de lombo assado.
Gervásio, o Cruel, segurou o garfo com espanto, passou-o de uma mão para a outra, observou-o atentamente, e, com um gesto relâmpago espetou o utensílio no olho direito do viajante. Acto contínuo arrancou-lho da órbita e meteu-o na boca. Na sala era o vácuo, os saltimbancos há muito que se haviam escondido debaixo da mesa.  Depois de mastigar vagarosamente, Gervásio, o Cruel sentenciou:
- O olho é bom! – E nisto peidou-se ruidosamente. Os bobos largaram de imediato aos saltos e aos gritos na barulheira habitual e toda a gente na corte fez o que habitualmente fazia quando o líder se peidava, bateu palmas.

6 comentários:

Anónimo Says:
2 de setembro de 2011 às 15:07

Incrívelmente Cruel.


:)

El Matador Says:
2 de setembro de 2011 às 15:27

Ehehehe

Eva Gonçalves Says:
2 de setembro de 2011 às 17:14

:))) Tão teu este texto!! Gostei muito! :) Beijo

El Matador Says:
2 de setembro de 2011 às 17:47

Obrigado Eva. :)

Briseis Says:
3 de setembro de 2011 às 11:13

Já tinha saudades destas descrições muito medievais dos banquetes bárbaros e heróis cruéis... Estás muito lá... =)

El Matador Says:
3 de setembro de 2011 às 14:38

:) Também eu.