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2 de Agosto

| domingo, 7 de agosto de 2011 | |
Os amigos. Os amigos são as pessoas mais estranhas do mundo. Estes amigos não são os meus. Os meus amigos eu conheço de pequenino, e não são estes. Estes riem-se comigo e de mim (a maior parte das vezes), empurram-me e pregam-me partidas, fazem-me cair e aleijam-me nos joelhos. Quem são estas pessoas que tendem a seguir-me? Metem-me canecas de cerveja na mão e pagam-me whisky, e pedem que cante ou toque guitarra ou declame poemas. Mas eu não sei nenhum poema de cor, a não ser aquele do Fernando Pessoa que diz que o poeta é um fingidor e eu finjo que sei o poema mas nunca o declamo porque na realidade não o sei, como aquele do Alberto Caeiro que diz que o menino Jesus vem a descer pelas encostas do monte e que o Espirito Santo é uma pomba que suja as cadeiras; esse também não sei, pronto: há dois poemas que eu não sei de cor e são os dois do Fernando Pessoa, se bem que um seja do heterónimo; e por isso desvio a conversa e pedem-me para tocar guitarra. Mas de onde é que veio esta mania que eu sei tocar guitarra? Se fossem meus amigos sabiam que eu não sei sequer quantas cordas tem uma guitarra, a não ser que a mais grave é o mi e a mais aguda é o mi também e que pelo meio tem o lá, o ré, o sol, o si e o mi outra vez, já tinha dito é mais aguda, e por isso disfarço, sou um artista do disfarce isso sim, disfarço que sei tocar guitarra mas nunca toco, e quando me apresentam uma, dou socos na parede e desculpo-me que com a mão dorida que não consigo tocar. E então dão-me baldes de whisky e cerveja, é para celebrar, dizem eles, e eu conto piadas, porque as celebrações dão-me vontade de rir, e as piadas agradam a uns mas desgostam a outros, mas a vida é assim, não se pode agradar toda a gente, e se eu os conhecesse ao menos, até podia tentar, mas a noite já vai longa e não me apetece, não há amor que não dê em ódio nem ódio que não dê em amor, como diz o Matador. Quando estou bêbado penso que sou ele, e disse-lhes: Sou o El Matador. Assim mesmo, de repente. Eles riram-se muito porque não fazem ideia de quem seja tal personagem, e eu também não lhes expliquei porque também não sei. Às vezes vejo-o, no reflexo das águas ou nalgum espelho mas nunca o consigo discernir e por isso esqueço-o. Recebi beijinhos de duas loiras, uma que era ruiva e passou a loira ou talvez o contrário e outra que era mesmo loira e agora tem o cabelo preto. Não me lembro da conversa mas sei que cantei porque me pediram, embora eu não saiba cantar mas tenha esta queda para palhaço. Quando me visto de palhaço gosto que me chamem de Anacleto, mas todos me chamam por outro nome, porque não me conhecem. Aos domingos visto-me de mulher e passeio de ressaca com os saltos altos que eram da minha mãe, que já não tenho. Às vezes, para dar um toque mais andrógino coloco uma gravata do meu pai, que também já não tenho. Sou orfão, como a Annie e talvez devesse pintar o cabelo de ruivo. A Annie tinha um cão e uma banda sonora do Kid Creole & the Coconuts, mas eu não tenho cão e quando é de manhã e tou de ressaca, na minha cabeça passam sempre os Einstürzende Neubauten que tocam com berbequins e cantam em alemão e que eu não percebo nada porque me baldei às aulas no segundo ano para jogar snooker. Hoje tenho um diploma de snooker que não me serve para nada. Se falasse alemão citava aos meus amigos frases célebres do Nietzsche, na lingua original, o que impressiona sempre muito, como aquela do abismo a olhar para nós. Assim não digo nada, porque não sei alemão e porque não vejo os meus amigos desde pequenino, desde a adolescência vá lá

20 comentários:

Catarina Says:
7 de agosto de 2011 às 21:28

Introspeção com vertente pessimista?!
: )

El Matador Says:
7 de agosto de 2011 às 21:30

Ahaha, Olha que eu não a acho assim tão pessimista, mais cómica até.

Catarina Says:
7 de agosto de 2011 às 21:35

Um pessimismo com vertente comica. (fiz greve aos acentos)

El Matador Says:
7 de agosto de 2011 às 21:39

Mais por aí.
Fizeste bem, hoje em dia também já não sei muito bem o que é que ainda leva acento e o que não.

Anónimo Says:
7 de agosto de 2011 às 22:22

Eu adorei.
Contaste uma realidade,usando com dignidade imagens que dizem muito de ti.
A vida real é um teatro que se desempenha todos os dias. A representação em palco é a realidade da nossa vida, aquela que se mostra em certas alturas que não o quotidiano.
Os amigos são o teu público. Tu és o actor.
Já pensaste em procurar os teus amigos de pequenino?
Um abraço

:)

El Matador Says:
7 de agosto de 2011 às 22:43

Obrigado desejo, ainda não pensei nisso.

Catsone Says:
8 de agosto de 2011 às 14:07

Matador, não largues os antipsicóticos!!!

El Matador Says:
8 de agosto de 2011 às 18:05

ehehe, Estás a falar comigo ou com o outro?

Briseis Says:
9 de agosto de 2011 às 17:53

Pois... pagam-te cervejas e whiskys... e misturar fermentados com destilados tem sempre resultados imprevisíveis... É como ter amigos! A gente tem até deixar de ter... Imprevisível. A única coisa que é certa é que acabaremos por os perder. Os desiludidos com eles ou com nós mesmos.

mz Says:
9 de agosto de 2011 às 18:03

Eles não sabem quem é o "Matador" mas nós aqui sabemos. "El Matador" e seus heterómimos... com todas as suas histórias tristes, resmungonas, alegres, sérias.
Estamos em vantagem :) e tu não precisas de declamar de cor ou de mostrar que sabes tocar guitarra. Aqui basta ler-te. Ficção ou realidade...
Um belíssimo texto!

El Matador Says:
9 de agosto de 2011 às 18:37

@Briseis: é uma mistura bombástica:)

@Mz: Muito Obrigado!

Sourire * Says:
11 de agosto de 2011 às 17:46

Hoje em dia a Amizade está a ser muito vulgarizada, é tudo amigo. No fim das contas nem chegamos a saber quem é ou deixa de ser...
Ou então sabemos (à nossa maneira).
:)

El Matador Says:
11 de agosto de 2011 às 20:31

é só amizades de facebook.

Otário Tevez Says:
18 de agosto de 2011 às 10:58

este é decerto um texto de me fazer pensar o dia todo nas advertências da vida...
'Quando me visto de palhaço gosto que me chamem de Anacleto, mas todos me chamam por outro nome, porque não me conhecem.' ahah, boa boa...

El Matador Says:
18 de agosto de 2011 às 11:15

Pensemos então na vida.

luisa Says:
19 de agosto de 2011 às 22:43

Deixa lá... ninguém conhece verdadeiramente ninguém.

El Matador Says:
19 de agosto de 2011 às 22:45

nem mais.

Unknown Says:
21 de agosto de 2011 às 12:47

muito bom matador! bj

Otário Tevez Says:
31 de agosto de 2011 às 14:04

estás de férias matador..?
saudações otárias

El Matador Says:
31 de agosto de 2011 às 14:09

Antes tivesse Otário, 'tou bloqueado.