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12 de Março

| segunda-feira, 14 de março de 2011 | |
Às 15h30 a confusão já é grande, o que sempre acontece quando se agregam tantas pessoas num espaço tão exíguo; as sub-reptícias cotoveladas são inevitáveis. Há um nervosismo miudinho que ameaça tornar-se adulto num curtíssimo espaço de tempo. Começam os desabafos, soltos como quem não quer a coisa, mas em voz alta, para que sejam perfeitamente ouvidos «o estado a que isto chegou» ou «isto é uma vergonha».
Embora lá fora o sol expluda em todo o seu esplendor, saudando um dia primaveril antecipado, na sala de espera a luz amarelada projecta sombras castanhas nas cinzentas pessoas que aguardam. Quem espera também é paciente.
Numa parede desfazem-se mitos e dúvidas sobre as doenças crónicas. Ao alto, duas placas em azul e branco indexam os variados serviços: da cardiologia à obstetrícia, passando pela nefrologia até à pneumologia. Sob a autoridade tácita das placas, a multidão (des)organiza-se em duas filas onde se empurram e afastam como numa pequena batalha campal. São quase quatro horas, a impaciência cresce com o aproximar da hora da visita; uma mulher baixinha, mais afoita, corta a fila e decidida dirige-se à porta de acesso; é barrada pelo segurança ao mesmo tempo que um clamor de protestos se levanta «Ó minha senhora, onde é que pensa que vai?» grita uma mulher do meio da fila. «Tem que esperar como toda a gente, minha senhora, aqui não há cunhas» grita outra quando os empurrões começam como forma de protesto. Vista de fora a multidão faz lembrar os ajuntamentos à porta duma qualquer livraria em dia de lançamento do último Harry Potter, ou o Harrods em dia de saldos, ou qualquer loja americana durante a Black Friday.
Um homem enraivecido, visivelmente  magoado no seu sentido de dever cívico, rasga o cartão de dador de sangue quando se apercebe que não tem livre circulação e que tem de aguardar na fila como toda a gente. Desfaz o cartão em mil pedaços em frente das auxiliares lívidas e grita para toda a sala que neste momento é a sua audiência, «Vaiem vocês dar sangue que a mim já não me apanham mais» e depois acrescenta, a confirmar o que todos os outros já tinham concluído «isto é uma vergonha!»
16h00: A multidão ansiosa avança desarvorada pela escadaria acima. O rosto dos visitantes denuncia o estado dos visitados. A euforia bem disposta dos que visitam um recém-nascido ombreia com a desolação velada de quem procura o doente terminal. Para os que esperam lá dentro, a hora das visitas é sagrada,  como a manhã de natal.
Lá fora, a multidão em protesto desce a avenida de volta ao Largo de S.Francisco. A Luta Continua.

11 comentários:

Catarina Says:
14 de março de 2011 às 13:10

Um texto que deixa transparecer uma série de sentimentos sem no entanto os mencionar pelo nome...
Muito bem escrito, El Matador!
: )

El Matador Says:
14 de março de 2011 às 13:33

Obrigado Catarina.

Catsone Says:
14 de março de 2011 às 14:34

Gostei imenso. Lembra-me muito as visitas nos HUC quando por lá andava a estudar. Por mais que as pessoas não gostem, esse tipo de "organização" é um mal necessário, pelo bem dos próprios doentes.
Quanto ao sr. do cartão de dador de sangue, não me parece que faça falta a sua dádiva: parece ter sangue ruim...

Porta-te

El Matador Says:
14 de março de 2011 às 15:02

Concordo contigo, a organização não é perfeita mas funciona. O terrível nestas situações é a falta de civismo que acaba sempre por vir ao de cima; o senhor do cartão de dador foi apenas um entre muitos casos.

Anónimo Says:
14 de março de 2011 às 16:27

Não consigo comentar, por razões que me tocaram.
Mais uma das tuas verdades obervadas com uma perfeita lucidez.


:) desejo

El Matador Says:
14 de março de 2011 às 19:33

Obrigado, Desejo.

Briseis Says:
15 de março de 2011 às 11:12

Antes de mais, seja bem aparecido, Caro Matador! =) está justificaddíssima a ausência, se serviu para congeminar mais esta pérola! O motim começou no Hospital... quem sabe onde terminará...?

El Matador Says:
15 de março de 2011 às 11:25

Obrigado Bárb...Briseis.

Briseis Says:
15 de março de 2011 às 11:51

Iiiiisso... Não me façam arrepender de ter revelado a minha graça...lol

Lala Says:
24 de março de 2011 às 15:34

Esperamos. Desesperamos. Protestamos. E caímos.

[felizmente que voltei!]

El Matador Says:
24 de março de 2011 às 15:50

Ainda bem que voltaste, já tinha saudades.